O desfile da Unidos de Padre Miguel neste ano, belíssima homenagem a Ariano Suassuna – escritor falecido em julho do ano passado –, foi mais um dos tantos exemplos da literatura brasileira no Carnaval. Essa relação entre a literatura e as escolas de samba passou a ser feita com a exigência de temáticas nacionais nos enredos, que ocorreu a partir da década de quarenta e proporcionou, desde a época, um diálogo importante entre a cultura letrada e a cultura popular.
Diante de um cenário histórico que, de certa maneira, opõe o âmbito das letras nacionais ao espaço popular, o Carnaval, festa em que o barão da ralé se consagra como rei profano e divino, foi capaz de mesclar a rua e a Academia e mandar às favas os títulos que para muitos trazem algum prestígio. É na folia de Momo, portanto, que os doutores abandonam suas máscaras e dão voz a Aldir Blanc e João Bosco: “custei a compreender que a fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias por toda a vida”.
Nesse sentido, a ponte entre o samba de enredo e a obra literária, quebrando o contraste popular x erudito, une aquilo que para muitos parece não possuir vínculo. A letra da música, em todo caso, obviamente não explica o aspecto literário – e, por isso mesmo, singular – da obra, mas sintetiza o que ela aprofunda por meio de um estilo também próprio. Assim, trabalhar com esses diferentes gêneros – principalmente em sala de aula, se pensarmos pelo viés educacional – pode ser altamente enriquecedor.
Dos diversos exemplos literários que foram temas dos desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro, destacam-se alguns: em 1952, a Mangueira homenageou “um poeta de sublime inspiração”, Gonçalves Dias; a Portela, em 1966, foi campeã com o samba de Paulinho da Viola, o único de sua carreira, sobre Memórias de um sargento de milícias, o romance de Manuel Antônio de Almeida a respeito da figura do malandro e do Rio do século XIX; em 1975, a Águia se inspirou em Mário de Andrade para levar Macunaíma à Avenida, enquanto a verde-e-rosa poetizou o Carnaval com Jorge de Lima; a Em Cima da Hora ficou sendo responsável por um dos melhores sambas da história, em 1976, com enredo sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, mostrando que o “sertanejo é forte, supera a miséria sem fim”; e, pra terminar, vale registrar que Ariano Suassuna, o Imperador da Pedra do Reino, já havia sido homenageado pelo Império Serrano em 2002.
Muitos outros enredos foram criados com base na literatura. Vitoriosos ou não – a Unidos de Padre Miguel, por exemplo, deveria ter sido campeã com Suassuna mas não foi –, formam, sem dúvida, uma contribuição histórica e cultural de grande valor para o Brasil. A análise dos enredos e seus sambas, dessa forma, faz com que o elo traçado entre o carnaval e a literatura possibilite a quebra de uma barreira existente entre as manifestações populares e as literárias.