Continuando a análise iniciada ontem, hoje aponto minhas impressões para o que considero ser o “pelotão intermediário” do CD.
8) São Clemente: “Mais de mil palhaços no salão” – Leozinho Nunes
Composição: Rodrigo Índio / Alexandre Araújo / Fabio Rossi / Vinícius Nagem / Amado Osman / Armando Daltro / Rodrigo Telles / Davi Dias
Ao meu ver, esse é o único samba que era melhor na época na disputa do que é atualmente. Os compositores foram extremamente felizes ao destrinchar a melhor sinopse do ano e fazer um samba ao estilo que o enredo dos palhaços pedia: leve e alegre, com a cara da São Clemente. Com uma melodia muito bem construída e uma letra muito bonita, o samba flui com muita facilidade e é gostoso de se ouvir.
Porém, da disputa para o CD, a São Clemente inexplicavelmente alterou em muitos pontos a melodia do samba, matando algumas das suas melhores sacadas. O refrão principal, por exemplo, tinha um manjado e muito bem inserido “Hoje tem São Clemente? Tem, sim senhor!”, aludindo ao circo. Agora, porém, o “Hoje tem São Clemente”, com a entonação em que é cantado, sugere uma afirmação e não uma pergunta. Era um dos melhores momentos do samba e agora ficou extremamente convencional. O que mais me incomoda, porém, é o quanto o samba subiu de tom na voz do estreante Leozinho Nunes. Não sei se por opção dele – que por sinal gravou com muita personalidade e segurança, o que me surpreendeu bastante -, ou da ala musical, essas alterações prejudicaram as melhores nuances melódicas do samba que foram, em parte, destruídas, prejudicando o canto.
Tais mexidas já se mostram problemáticas logo no início, com o verso “Que confusão, Meu Deus do Céu!”. Era um início muito gostoso de se ouvir na disputa e agora ficou até desagradável, eu diria. Embora menos perceptível, o mesmo ocorre com o “Alô, alô!” na entrada do refrão do meio. O refrão do meio tinha sido construído de maneira brilhante com uma descida de tom, mas agora ele se inicia na mão oposta: com uma subida mal costurada. Diga-se de passagem, a saída desse refrão do meio me incomoda desde a época da disputa. Até melhorou no CD oficial, mas ainda vejo uma quebra de continuidade estranha no desenho melódico em “Tá certo ou não tá? Eu vou gargalhar”. Outra coisa que me incomoda desde sempre é a repetição da brincadeira com “O palhaço o que é?”, que aparece no penúltimo verso da estrofe final e no início do refrão principal.
Por outro lado, vejo muitas outras qualidades. A letra na primeira parte não tem nada de muito inovador, representando através de frases simples o que o enredo propõe. E quem disse que precisa de mais que isso? A grande sacada da letra desse samba é a simplicidade porque a temática é simples. Menos, nesse caso, é muito mais. Mais adiante, no refrão do meio, o hino clementiano atinge um de seus melhores momentos. Apesar da subida de tom, o “Alô, alô” ainda é muito bonito e melodioso. A melodia do refrão do meio vai crescendo até atingir o ápice em “Dou cambalhota, pirueta! Se chorar faço careta”. É tão alegre e gostoso de ouvir que me dá uma extremamente incomum vontade de estar lá desfilando.
Por fim, destaco o melhor momento do samba que é o verso: “Acorda! Esquece a tristeza e vem cantar”. Impossível representar melhor o espírito do enredo e do samba. Um convite simples, quase inocente. Resumindo: o hino da São Clemente é o que eu espero de um samba-enredo e é o que eu acho que falta para o Carnaval atual. Simplicidade, alegria, inocência. Leveza, no fim das contas. Estamos em um momento estranho onde cobramos sempre poesias extremamente rebuscadas ou uma melodia extremamente inovadora e estamos abandonando sambas como esse, que nos conquistam pela simplicidade. É um grande samba. Uma pena que não tenha sido, pelo menos por enquanto, muito bem trabalhado pela escola. É uma obra que vou sempre preferir ouvir na versão da disputa à esta que faz parte do CD oficial.
7) Beija-Flor de Nilópolis: “Mineirinho Genial! Nova Lima – Cidade Natal. Marquês de Sapucaí – O Poeta Imortal!” – Neguinho da Beija-Flor
Composição: Marcelo Guimarães / Sidney de Pilares / Manolo / Jorginho Moreira / Kirraizinho / Diogo Rosa
Um ótimo e, pelo menos em minha visão, extremamente subestimado samba. Pode não ser uma obra espetacular, fantástica, histórica, mas é um samba muito bem feito. O enredo biográfico sobre a vida do Marquês de Sapucaí ganhou um samba que une com muita competência história e emoção. Que consegue aliar uma burocrática biografia com um até um tanto glorioso legado do Marquês. É outro samba que aposta em um refrão principal forte e com uma autoexaltação, o que sempre me agrada. Me incomoda um pouco o fato do primeiro verso deste refrão ser em primeira pessoa e o resto em terceira, o que me passa a sensação de que o início dele foi feito para “tapar buraco” na melodia, mas é inegável a força e a beleza dos versos “Sou Beija-Flor, na alegria ou na dor / A Deusa da Passarela, é ela! / Primeira na história do Marquês / Que na Sapucaí é soberana / De fato Nilopolitana”. A propósito, acho essa ideia do “Primeira na história do Marquês” uma das mais brilhantes do CD. Já mostra logo de cara uma sintonia a princípio não muito clara entre a escola e o homenageado.
Gosto do começo do samba, que contextualiza a relevância histórica do enredo, mas é justamente ali no comecinho que o samba comete o seu maior deslize. Embora no enredo fique clara a menção inicial à cidade de Nova Lima, essa menção não é apresentada com clareza no samba: “De Nova Lima a poesia se fez / Na genialidade do Marquês / Nasceu em Congonhas de Sabará / O mais puro ouro das Minas Gerais / Atravessou o mar, no afã de conquistar / Conhecimento em terras lusitanas”. Pela maneira como a letra é construída, esse “Atravessou o mar” dá a entender que a referência é ao “mais puro ouro”, mas na verdade, sem nenhuma transição ou contextualização, já está iniciando a biografia do Marquês, encerrando qualquer referência à sua cidade natal.
O refrão de meio é outro ponto altíssimo da obra. A subida de tom na repetição do verso “Ao longe se ouviu a voz da Independência” ficou fantástica, valorizando a construção melódica extremamente criativa da estrofe. O samba apresenta algumas licenças poéticas que não representam com muita fidelidade o momento que retrata e a própria vida do Marquês, que não foi tão gloriosa quanto a obra retrata; mas não faço nenhuma ressalva quanto a isso porque, afinal de contas, é uma homenagem.
Na segunda parte, a letra derrapa um pouco pelo difícil entendimento dos versos “Em seu legado a primazia / Na gratidão que herdaria”. Porém, vale e vale muito destacar a brilhante construção melódica que começa mais suave e vai crescendo até atingir o ápice em “Poeta, músico, escritor / O mineirinho que o Rio imortalizou”. Aí vem também o melhor momento da letra, que fala sobre o Carnaval. A mudança na linha melódica ajuda no entendimento da letra, que deixa de contar a história do Marquês e passa pela primeira vez a falar diretamente com ele. Ficou muito bonito porque é uma declaração do samba para o homem que dá nome à Avenida. O destaque fica para a representação do sambista como “Artista! Herdeiro verdadeiro de Ciata / Que hoje te abraça aos pés da Praça / Em mais um Carnaval”, encerrando o samba com brilhantismo. Destaque também para a brilhante gravação de Neguinho da Beija-Flor, uma das melhores já feitas por ele nos últimos anos.
6) Portela: “No Voo da Águia, uma viagem sem fim” – Wantuir Oliveira e Gilsinho
Composição: Wanderley Monteiro / Samir Trindade / Elson Ramires / Paulo Lopita 77 / Dimenor / Edmar Jr.
Embora eu goste muito desse samba da Portela, devo dizer que acho bem menos espetacular do que tenho lido por aí. É um ótimo samba, sem dúvida, mas confesso que não gosto tanto assim a ponto de colocar no grupo dos melhores do ano. Me agrada muito a opção por retomar o estilo de sambas consagrado pela parceria de Luiz Carlos Máximo entre 2012 e 2014 e que, pelo menos para mim, foi deixado um pouco de lado em 2015. Essa melodia mais acelerada e uniforme é a cara da Portela, talvez a única escola que ache o andamento correto para evitar o arrastamento que um samba com essas características pode causar.
Outra coisa que me agrada muito é o refrão principal. Não tenho dúvidas em dizer que os versos “Eu sou a Águia, fale de mim quem quiser / Mas é melhor respeitar, sou a Portela” são os mais fortes do ano. Pode falar, mas é melhor respeitar. Nenhuma escola se encaixa melhor nisso do que a Portela. Porém, abusando do preciosismo, devo confessar que me incomoda a solução simples encontrada em “mais uma estrela / Que vai brilhar no pavilhão de Madureira” já que a bandeira da Portela não traz as estrelas dos títulos conquistados pela escola. Coisa boba, mas que me incomoda. Um ponto que me agrada bastante, porém, é a setorização do enredo sendo bem respeitada, contribuindo para a homogeneidade da letra e a conexão entre os seus mais diversos pontos.
A melodia aposta, como eu disse, no estilo que a Portela vem imprimindo nos últimos anos. Alternando trechos mais acelerados com outros mais lentos e respeitando sempre a letra, sem atropelamentos. A exceção é na estrofe final, no trecho “Quero esse mapa da mina”, cujo canto é muito difícil e sílabas são ignoradas. Por outro lado, trechos como o “Oh, leva eu, me leva” e o refrão do meio são pensados e realizados de maneira muito competente. Da letra, destaco os versos “E no meu destino sem fim / Cruzar o azul que é tudo pra mim”, que é muito bonito, e o trecho final, também de muita beleza, começando com uma homenagem a Paulo da Portela e terminando com uma convocação a todos os portelenses: “Meus filhos vêm me adorar / O samba reverenciar / Abram alas, vou me apresentar”. É simplesmente genial porque na sequência realmente vem a “apresentação” que é o refrão principal e o “Eu sou a Águia, fale de mim quem quiser”. Wantuir e Gilsinho cantaram muito bem o samba, com o segundo se destacando mais pelo estilo da obra se encaixar perfeitamente ao seu estilo de canto.
5) Unidos da Tijuca: “Semeando Sorriso, a Tijuca festeja o solo sagrado” – Tinga
Composição: Dudu Nobre / Zé Paulo Sierra / Claudio Mattos / Paulo Oliveira / Gustavo Clarão
O enredo era complicado… Parecia desconexo, cheio de lugares comuns e recortes mal feitos. E não é que deu em um samba lindo? A parceria vencedora deu jeito em um tema complicado e construiu um samba que se destaca pela beleza da letra e pela melodia cuidadosa e que não apela para desenhos simples. Embora com um pouco mais de riqueza poética, cabe aqui o que foi dito para a São Clemente: a grande sacada da letra do samba é a simplicidade. A vida no campo virou um tema “cult” para o Carnaval, mas é essencialmente uma vida simples. E essa característica é muito marcante no samba.
A letra é construída em primeira pessoa, mas com um sujeito indeterminado. “O homem do campo” é quem comanda o passeio pela sua terra. E começa no refrão principal com uma saudação muito bonita à Mãe Natureza e destacando outro ponto marcante do samba: a religiosidade. Já neste refrão o samba é classificado como uma oração, o que é reafirmado pelo início da primeira estrofe: “Sou eu… Do barro esculpido pelas / Mãos do Criador”. E assim a letra passa pela chuva, pelo sol no olhar do eu-lírico enquanto a agricultura do Brasil é cantada pelo Borel… Gosto muito do verso “Brota o suor que se escorre na enxada”, mas tenho alguma dificuldade em compreender o trecho seguinte. Não fica muito claro quem ara, planta, colhe em devoção, assim como não entendo bem a relação com o “”ver de” perto a cria alimentada”.
Por outro lado, o refrão do meio é de uma felicidade rara. A começar pelo “Sou matuto sonhador”. Depois, pela melodia alegre que casa bem com o “a viola dá o tom” e também pela volta da questão da religiosidade com o verso “Vou rogando ao Pai querido / Pra colheita florescer”. Outro acerto do samba é o jogo de palavras do verso “Vou levantando a poeira da terra / Que aterra” e, na sequência, uma exaltação quase oculta ao agricultor. “Fertilidade é a arte do homem que cuida, / Protege seu chão”. É muito legal a ideia de apresentar a fertilidade como uma arte, apesar de toda a simplicidade do cenário que a envolve. O trecho mais espinhoso da sinopse, a inserção da cidade de Sorriso no enredo, também foi bem costurado. A solução veio com um trocadilho ótimo: “O meu negócio é isso, seu moço / “Sorriso” no rosto / Por esse meu mundão rural” . O último destaque vai para os versos finais, que se aproveitam da posição de desfile da escola: “O dia vai raiar e o povo há de cantar feliz”. É, sem dúvida, um dos grandes sambas deste ano de 2016. Tinga não compromete o samba, mas por não ser uma obra alinhada às suas características, também não se destacou.
Amanhã os “sambas do G-4”, fechando a série de análises. Até lá.