Assim que soarem os primeiros acordes vindos do carro de som da Acadêmicos da Rocinha, no dia 5 de fevereiro, terá início o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro na Marquês de Sapucaí. A grande maioria das pessoas que o acompanharão, seja no Sambódromo ou pela TV, não notará, mas sob o maravilhoso espetáculo das 26 grandes escolas da cidade, vive uma disfarçada e pouco confessa incerteza.

Jamais o sambista recebeu uma imagem tão negativa em sua mente quando parou para pensar em como será o Carnaval daqui a 10, 15, 20, 50 anos. O pré-carnaval desse ano está sendo marcado, além das habituais análises de sambas, barracões, ensaios e etc, por uma profunda reflexão sobre diversos aspectos que vão muito além de um desfile.

São reflexões que o sambista em geral protelou por muito tempo. São constatações hoje muito claras, mas que em um passado não muito distante eram coisa de gente pessimista. Hoje, não. Hoje parece muito claro para muita gente quais foram os erros que levaram o Carnaval a perder espaço na mídia e, consequentemente, na cultura popular brasileira. E esses erros soam como uma bateria descompassada, com instrumentos desafinados e uma batida desencontrada, incômoda, implorando por um Mestre que com seu apito retome a cadência agradável dos sonhos de todo sambista.

E tão incômodo quanto este som desafinado é a dúvida. Antes estivéssemos a procura de um Mestre que conheça essa cadência… O Carnaval, no fim das contas, sequer sabe qual é essa cadência. E isso é pior do que qualquer coisa.

Mangueira97É difícil saber exatamente em qual momento o Carnaval deixou de ser um espetáculo realmente popular para se reduzir a um nicho de aficionados. Mas aqui, para começar, cabe apontar a diferença entre “Carnaval” e “desfile de escola de samba”. O desfile de escola de samba ainda é bastante popular. Bastante gente acompanha, comenta, quase todo mundo sabe que existe, as escolas em si têm seus nomes conhecidos e reconhecidos por muita gente e a apuração é um dos eventos mais aguardados do ano até para quem não sabe o que é um tamborim.

Mas o Carnaval, que é na verdade algo que dura o ano inteiro, está reduzido a um nicho de aficionados. Claro, jamais houve expectativa em torno de sinopse, muito menos uma comoção nacional por uma final de samba-enredo, mas a partir de dezembro, com o lançamento dos LPs oficiais com os sambas, o Carnaval se tornava o centro das atenções.

Perdi as contas de quantas vezes já ouvi, e o leitor deve poder dizer o mesmo, que “não se faz mais samba bom como antigamente” – e por antigamente leia-se 1993, já que o primeiro citado é sempre o “Peguei um Ita no Norte”, que sequer era dos mais cotados para o desfile daquele ano. Uma análise rasa que obviamente parte de quem não ouve mais um samba. Eis uma mostra da perda de popularidade do Carnaval. Uma outra é a perda de espaço do samba nas comunidades.

Nunca me esqueço da frase do compositor André Diniz, talvez um dos únicos gênios contemporâneos que estarão na história do Carnaval, em entrevista a este blog, em janeiro de 2015: “Hoje em dia tem mais vaga do que gente pra desfilar”. São coisas que durante muito tempo passaram como pequenas, de fácil solução. Só agora isso tudo começa a surgir como uma bola de neve. Em resumo, é agora que se começa a perceber como os problemas que afetam o Carnaval estão afetando o desfile das escolas de samba.

20130212_053021A grande cacetada que acordou todo mundo talvez tenha sido a questão da transmissão da Globo. Muita gente tentou e ainda tenta reduzir a questão a uma maldade da emissora carioca para com as escolas. Como um capricho ou uma traição. Mas não acredito que alguém realmente consiga chegar a essa conclusão, já que a realidade se mostra de maneira nítida: o desfile das escolas de samba se tornou algo irrelevante para o horário nobre. E isso é causa e não consequência do desinteresse da Globo.

Foi talvez a primeira mostra mais clara da tal relação entre o que se faz durante 11 meses e a repercussão que o grande espetáculo do mês restante tem na mídia em geral. Em tempos onde milhares de pessoas tentam desesperadamente se jogar na frente da mídia para aparecerem, o Carnaval fica 11 meses escondido, esperando a mídia aparecer para mostrar suas maravilhas. Quando ela obviamente não aparece, o desfile de escola de samba perde força e se torna desinteressante.

Outras questões apareceram na sequência para provocar algumas outras reflexões. Uma delas, aliás, pouco tem a ver com o Carnaval. A crise econômica que assolou o Brasil afetou de maneira muito grande as escolas. Dependentes de patronos ou patrocínios e sempre das subvenções estatais, as agremiações perderam sua independência financeira. E se viram encurraladas, sem condições de manter o padrão estético megalômano que elas próprias inventaram no tempo das vacas gordas.

A busca sem sucesso por patrocínio em tempos de cintos mais apertados indicou que o Carnaval faz parte daquele grupo de investimento que geralmente é o primeiro a ser cortado. Aquele que só é feito se o dinheiro estiver sobrando. Como não está, ele não veio. E as escolas não tinham o seu pé de meia. Se viram incapazes de conseguir as suas fontes de renda. Claro que aqui existem honrosas exceções, mas, de maneira geral, fica muito claro que a crise, embora exista, afetou o Carnaval de maneira desproporcional.

20130210_045147Completando a trinca de pancadas nos corações carnavalescos, veio a notícia de que nem mesmo os ingressos para os desfiles estão evaporando na velocidade necessária. Ainda tem muita entrada à venda, o que se explica em parte pelo jurássico método de venda, mas também por uma diminuição do apelo popular do espetáculo. Ir à Sapucaí não é tão atrativo quanto era há alguns anos, assim como ver os desfiles na TV também não o são.

E o que é mais ironicamente cruel: faz muito tempo que os desfiles não estão tão bons. Comparando com o começo do século, por exemplo, temos desfiles mais equilibrados, melhor estrutura e sambas muito, muito melhores. Mas quase ninguém sabe disso. E por que? Qual é, afinal de contas, o caminho para recolocar o Carnaval no seu devido lugar na cultura popular? Por onde se deve começar? Entender o processo histórico enfrentado pelo espetáculo pode ser um caminho.

A época áurea do Carnaval, leia-se anos 70 e 80, foi marcada por um número surreal de escolas e gente desfilando. Chegamos a ter desfiles com 18 escolas e não foi raro ver desfiles com mais de 5 mil pessoas. Um tempo máximo de 90 minutos, com alegorias chegando na casa dos dois dígitos e, em alguns casos, com desfiles terminando depois do meio-dia. Com o tempo, esse tipo de coisa foi se tornando insustentável para todo mundo e, aos poucos, foi ficando, para usar o termo da moda, “compacto”. Sete alegorias, 82 minutos, 12 escolas. Algumas dessas alterações de um preciosismo desnecessário (14 escolas é um número perfeito, por exemplo), mas outras foram bem sucedidas. Será que não dá para fazer mais? Começam a surgir indícios de que dá.

A nova notícia é de que a partir de 2017, se aprovada uma proposta que surgiu, serão 75 minutos e seis carros no máximo para cada desfile. Essa ideia foi resultado de uma reunião entre a Liesa e a Globo para deixar o desfile cada vez mais “compacto”. Sempre fico espantado com a facilidade que os parceiros, todos eles, têm para fazer a Liesa aceitar suas propostas, mas, nesse caso, acho a ideia interessantíssima. Existem certos momentos na vida em que não dá para fugir da realidade e recapitulando alguns dos pontos desse texto fica mais fácil de entender porque acho que essa ideia é boa. O espetáculo, ficou fácil de perceber, é longo demais e pouco atrativo para a TV. O Carnaval perdeu espaço no morro e está sobrando vaga para desfilar. Me parece evidente, então, que existem dois caminhos: manter essa megalomania doente e ver o Carnaval perdendo cada vez mais espaço ou se adaptar à sua realidade atual.

20130209_042159Notem: não é reduzir o tamanho do desfile porque a TV acha melhor. É reduzir o tamanho do desfile porque esse pode ser o único método de aproveitar ao máximo as qualidades e os atrativos comerciais e populares do espetáculo desfile de escola de samba. Reduzir o tamanho de um desfile (o que não necessariamente implica em um tamanho total menor, já que, repito, dá para encaixar tranquilamente 14 escolas no grupo) não é nenhuma vergonha. Pelo contrário, é se mostrar atento aos desejos do público.

Porque não é preciso tirar nada daquilo que é essencial ao Carnaval para dar maior dinamismo à festa. Tira-se um carro alegórico aqui, corta-se umas duas ou três alas absolutamente irrelevantes ali, diminui o tempo das cada vez mais hollywoodianas coreografias das comissões de frente acolá e voilá.

E também não precisa ser um decreto para todo o sempre. Cabe fazer uma pesquisa, um teste. Cabe pelo menos uma vez na vida perguntar ao “consumidor” (em outros e saudosos tempos chamado de “povão”) o que ele quer ver. Não serão esses oito ou dez minutos a menos que vão matar a festa. Insistir em um modelo cada vez menos popular, no entanto, pode ser um meio bem sucedido para atingir essa “meta” que parece ser perseguida por tanta gente graúda nesse meio que não quer saber da opinião de ninguém e que se sustenta por meio de carteiradas. “Eu estou aqui há não sei quantos anos”. “Eu estava lá”. “Eu”. “Eu”. “Eu”. Agora que o absolutismo que impera nas quadras, nas reuniões e nas redes sociais começa a pesar no bolso e na consequente qualidade da festa, quem mais sofre não é quem não quis ouvir. É quem tentou falar.

20140303_043003Falando em bolso, voltemos à megalomania insana do Carnaval, agora falando em cifras. Não tem a menor condição de continuar mantendo essa exigência financeira completamente surreal que toma conta do Carnaval. Investem-se milhões e milhões de reais em uma noite, no desfile de escola de samba, “pra tudo se acabar na quarta-feira”. E se esses milhões fossem investidos nas outras 364 noites, fossem investidos no Carnaval?

Essa ideia da diminuição do desfile em tempo e conteúdo me parece interessante justamente porque todos os pontos afetados se encaixam. É um caminho, afinal de contas. Talvez não seja a solução, mas é uma tentativa. Não dá é para ficar parado. O Carnaval precisa desse norte, precisa encontrar uma alternativa. Precisa ter um futuro mais nítido e menos obscuro. Que estejamos no início dessa virada. Não nos enganemos, contudo. A estrada é longa e, até lá, a incerteza continuará martelando os ouvidos carnavalescos de maneira impertinente.

Como será o amanhã?

11 Replies to “Responda quem puder…”

  1. Leonardo,

    Parabéns pelo texto!
    Extremamente pertinente hoje e que poderia pautar de alguma forma como os meandros dos próximos carnavais poderiam ser tratados por todos que amam ou se admiram essa manifestação popular.
    Corro o risco de ser leviano e herege quando peço as escolas: se tornem S/A.
    Mas explico. Não tenciono transformar a alma das escolas (baianas, velha guarda, passistas) em CEO’s e colaboradores dentro de uma quadra. Acredito no valor que a tradição e o peso de um chão de escola trazem a um desfile. Num desfile que hoje em dia tem todas suas regras e regulamentos, onde ele deve ser “técnico” para não perder ponto, só vai funcionar se for feito com entrega de todos os componentes.
    Mas nos outros dias do ano, que seja feita uma gestão correta. Planejamento orçamentário, organizações de eventos e ações, “pesquisa de mercado” para saber a tendência, uso de redes sócias, engajamento em causas sociais, entre outros. Falo isso, claro, com a visão de um aluno Marketing e funcionário de uma companhia aérea que respira lucros, receitas, mercado.
    Falta apelo ao carnaval. Salvo as comunidades e torcedores (como eu), que acompanham, interagem, seguem e se informam sobre o tema, as outras pessoas ficam a parte e poucas se dispõe a conhecer o carnaval.
    Falando de São Paulo onde resido, é difícil o acesso a algumas quadras, falta informação sobre eventos e horários. Algumas escolas são elitistas ou “bairristas”, não permitem torcedores de outros times (dizem que sim, mas é só ir e notar o clima). Tem muito “diretor”, “harmonia”, “departamentos culturais” e menos senhores e senhoras da antiga, que acolhem o visitante.
    Ir ao Anhembi é ruim para quem tem e não tem carro, pois a comida é cara, os banheiros são precários. Os desfiles são às vezes longos e tem escola que só entra quando a Globo começa a transmitir (em 2015 a Vila Maria fez isso, eu estava lá, ela levou um sonoro “uh demorô!” das arquibancadas e entrou já “sofrendo” certa aversão).
    Temos que resgatar justamente o atrativo e menos o status de torcer por uma escola. Os tempos pedem mudanças, pois o que não se renova, se estagna e morre.
    Vida longa ao Carnaval!
    Abraços!

    1. Obrigado, Ladislau. Ainda tem um caminho longo para as escolas percorrerem nesse sentido. Só espero que não seja tarde demais.

    2. Disse tudo.

      A maioria das escolas não quer mais abraçar ao povão. É só ver a quantidade de camarotes que as mesmas possuem e quantas “estrelas” e “celebridades” trafegam por lá.

  2. boa noite com a diminuição do tempo de desfile e garantia da tv globo passar 12 escolas na integra e começar desfile ex. as 22:30

        1. Só que o problema é que nos anos anteriores a transmissão começava mais tarde, às 23h, na sexta, por causa do Globo Repórter, sempre sendo reprisado, e no sábado começava mais cedo, causando diferenças no encerramento nos dois dias. Ao menos isso se igualou, pois me incomodava muito ver uma Nenê encerrar com sol a pino no primeiro dia os desfiles e no dia seguinte uma Mocidade Alegre encerrar tranquilamente com o dia ainda quase amanhecendo. O ruim é que todas agora terão que enfrentar sol caso não haja horário de verão.

  3. E quem sabe, um dia, teremos:

    *14 escolas no especial e 16 no Acesso; subindo duas e caindo duas; a vice do Acesso e a antepenúltima do Especial abrem os desfiles e a campeã do Acesso, obrigatoriamente, desfila no domingo;

    *Grupo B na Sapucaí, às terças-feiras;

    *Sambas que tragam emoção sendo novamente escolhidos, ao invés daqueles “resumos de sinopse”. Ah! E sambas menos acelerados;

    *Proibição de músicas nos camarotes. Quer ouvir techno, vá pra balada, e não pra Sapucai;

    *Notas dadas de 5 a 10, de 0,5 em 0,5 ponto (ou 0,25).

    Na minha opinião, seriam esses os pontos básicos para começar a atrair gente de volta ao Carnaval.

    E, claro, belíssimo texto, Leonardo!!

  4. Ainda sobre as condições financeiras que as escolas foram sujeitas este ano, segue link com uma boa matéria do Estado de São Paulo sobre as escolas paulistanas.

    Segundo o jornal, a prefeitura aumentou para 1 milhão de reais a verba deste ano, a Globo desembolsou outros 1 milhão e entre as 3 escolas com enredos patrocinados, X-9, Vai-Vai e Vila Maria, a Vila recebeu 989 mil reais da prefeitura de Ilhabela.

    http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,crise-faz-escola-de-samba-de-sp-apelar-para-artigo-nacional-e-reciclar-fantasia,10000007292

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