Em meu último texto antes do Carnaval, disse que algumas vezes o resultado premia trabalhos a longo prazo. Citei como exemplos três das grandes favoritas, Portela, Salgueiro e Unidos da Tijuca, inclusive. Enquanto amarrava o texto em minha cabeça antes de sentar em frente ao computador, concluí que os desfiles de hoje não abrem espaço para campeãs como a Estácio de Sá de 1992 ou a Vila Isabel de 2006. Aquelas que surgem de uma hora para outra e surpreendem. Um Carnaval acertado e pronto. Campeã! Isso não tem mais vez, pensei. E hoje agradeço pelo lapso de memória que me fez esquecer de colocar no papel essa lógica que seria profundamente destruída pelo título da Estação Primeira de Mangueira em 2016.

O título da Mangueira não foi resultado de um trabalho a longo prazo. O título da Mangueira se construiu em uma noite. Como dizia o samba, “uma noite de magia”. Um cenário construído quase que a mão para uma apoteose da campeã. E essa conclusão não exclui o fato de que houve sim um trabalho longo e árduo para que esse cenário fosse construído. Após o fiasco de 2015, a Mangueira enfim parou de errar e começou uma longa jornada rumo aos seus dias de glória. Eis aí o que me leva a creditar a conquista à esta noite mágica e não no trabalho em si. Em vias normais, 2016 seria um ano para recuperar a escola, talvez colocá-la entre as seis e depois, passo a passo, já em condições estruturais e financeiras melhores, começar a disputar títulos. Mas havia uma noite de magia disposta a contrariar toda a lógica. Disposta a quebrar tabus, disposta a mostrar que o desfile das escolas de samba muda, muda, muda, mas não perde a essência e está sempre propício a encantamentos repentinos que consagrem campeãs improváveis.

vilaisabel2016aA noite mágica da Estação Primeira de Mangueira começou bem antes do seu desfile. Começou, na verdade, como uma noite mágica do Carnaval Carioca. Bendita seja uma noite em que Portela e Salgueiro se colocam como grandes favoritas ao título. E ainda teve a Vila Isabel desfilando bonita e forte, carregada de emoção e mostrando que também começou a trilhar o caminho de sua grandeza habitual. Uma noite realmente especial… Mas deixa que dessas falamos mais tarde. O papo agora aqui é em verde-e-rosa. O último ato dessa noite tão marcante era imprevisível. A emoção era certa, mas seria ela misturada à decepção de uma escola plasticamente pobre ou teria ganho o Carnaval de 2016 mais um grande desfile em todos os sentidos?

Nem mesmo o mais otimista daqueles que esperavam pela segunda opção deixou de se surpreender com o que viu assim que a Mangueira pisou na Avenida. Leandro Vieira, um menino de 31 anos, se aproveitou de uma atmosfera criada não só pelo samba-enredo da escola, como também pelos próprios desfiles das concorrentes, para provocar uma catarse coletiva em quem assistiu ao desfile. De fato, a verde-e-rosa tinha alegorias muito bonitas, mas nada que outras escolas não tivessem feito. A diferença foi outra. Sem querer desqualificar a Portela (que, ao meu ver, foi a maior merecedora do título), a grande sacada que tornou um grande desfile em um desfile campeão foi a amarração competente do enredo refletida na parte plástica. Cantar um samba e reconhecer nele cada etapa do que passa diante de seus olhos é uma coisa que muita gente grande não consegue fazer (Paulo Barros, apesar do impacto inegável de seus carros e truques, não conseguiu e raramente consegue, até por uma questão de estilo). E Leandro Vieira, que há um ano se desdobrava para colocar dignamente a Caprichosos de Pilares na Avenida, fez isso com muita competência.

Curiosamente, o único quesito que tirou ponto da Mangueira é um bom símbolo disso. Na era das comissões de frente que mais parecem shows de musical americano, os jurados talvez não tenham reconhecido a leveza e a simplicidade da coreografia de Junior Scpain – outra grande novidade trazida da Série A. O singelo bailado das guerreiras de Oyá foi de um bom gosto tremendo e que iniciou a transformação daquele desfile em algo além da explicação. A Mangueira entrou carregada, no melhor sentido do termo. Entrou cheia de Bahia, o que de certa forma quer dizer que entrou cheia de si mesma. E foi assim que contaminou o público, também no melhor sentido do termo. E é justamente nessa hora que tudo começa a jogar a favor. O samba-enredo sempre foi muito bom, isso nunca se discutiu, mas ele também ganhou força e se envolveu na atmosfera que ele próprio ajudou a criar. Não mexe comigo! Chegou a hora, não dá mais pre segurar! É no dengo da baiana, meu sinhô, que a Mangueira vai passar… Explode, Coração!

mangueira2016cExplodiu. O desfile aconteceu. Não sei se por erro do julgamento ou por uma sorte danada das luzes terem se acendido quando deveriam, a iluminação instável do abre-alas não prejudicou a avaliação dos quatro jurados de alegorias e adereços. Seja uma coisa ou seja outra, seja omissão ou seja sorte, é difícil não colocar essas notas 10 na conta de toda a energia criada pelo desfile. Ver Maria Bethânia como trapezista num céu de lona verde-e-rosa no último carro foi o melhor jeito possível de encerrar um Carnaval e uma noite que vão entrar para a história. Ih, olha só como até a posição de desfile – aquela que por sinal foi decidida na mesma semana em que foi anunciado esse enredo – contribuiu. O nome disso é emoção, é magia. É, no fim das contas, Carnaval. Os corações mangueirenses – e aqui peço licença para dizer que, mangueirense que sou, ainda teimo em acreditar em tudo o que se passou na última semana – relutaram em acreditar até a penúltima nota 10 (aquela que mandou às favas a avaliação “descartável” do último jurado e decretou o título), mas estava escrito. Aqueles 82 minutos valeram por 14 anos de trabalho. E olha que nesses 14 anos a Mangueira deixou de trabalhar muitas vezes. Judiou não só de seus torcedores como também de quem ama o Carnaval e reconhece que certas escolas não podem ficar longe do protagonismo. Até por isso, brigar com Portela, Salgueiro e com a Unidos da Tijuca (que, lembremos, é campeã desde a década de 30), também contribuiu para valorizar a conquista.

E me deixe abrir aqui um espaço para falar dessas concorrentes. Um pouco menos da Tijuca, cujo vice-campeonato me surpreendeu apesar do bom desfile, mas destacando as outras duas adversárias. Ah, Salgueiro… Que jeito cruel de perder um título. Perder um título no último quesito (por mais que levasse 30 não seria campeão, mas ali foi onde a taça escapou em definitivo) sabendo que por um erro primário dói. Dói tanto que o Salgueiro não se perdoa. Assim como Sidclei e Marcella Alves tiraram tudo o que podiam de si para dar a volta por cima após as notas de 2015 e foram agraciados com os 40 pontos, o Salgueiro vai dormir com a imagem desse carro apagado por muitos e muitos meses. O discurso amargo de quem aceitaria melhor perder o título se fosse inferior à campeã e não por uma infelicidade momentânea me agrada muito.

O Salgueiro sabe que poderia estar comemorando e sabe que não está porque abusou da própria confiança. E essa confiança tinha tanta arrogância quanto essa consciência de onde a taça escapou: nenhuma. É apenas reflexo do trabalho feito pela Academia. Os salgueirenses não gostarão de ler isso, já que com razão querem um litígio permanente com o favoritismo, mas a verdade é que o gosto amargo do quarto lugar na boca do torcedor vermelho-e-branco me faz colocar, desde já, a Academia como uma das grandes favoritas ao título em 2017, justamente porque o salgueirense só vai se sentir favorito no momento em que for receber uma eventual taça de campeão. A busca pelo perfeccionismo tende a não permitir erros como esse.

portela2016aJá o caso da Portela me preocupa mais. Confesso que enquanto a escola passava tive a certeza de que 2016 era o fim da agonia portelense. A irônica história da maior campeã que persegue um título que, quando vier, soará como inédito, me parecia ter chego ao fim. E o portelense compartilhou desse pensamento de uma maneira cruelmente perigosa. A confiança pós-desfile era tão grande que imediatamente criei alguns paralelos com o futebol. O Brasil na Copa de 1950 e o Fluminense na Libertadores de 2008 foram os que mais me vieram à mente por conta das imagens, dos discursos, da expectativa… Parecia que a apuração não passava, para o portelense, de uma mera formalidade para derrubar as lágrimas e soltar o grito. E embora seja um caso diferente ao do Salgueiro, também não vejo arrogância em toda a confiança da azul-e-branco. É que por maior que tenha sido a magia mangueirense, realmente soava tudo muito perfeito para o pessoal de Oswaldo Cruz. E ele simplesmente não se preparou para uma derrota, como não se preparam os brasileiros em 1950 ou os tricolores em 2008. E a derrota veio trazendo um impacto negativo preocupante. Foi uma enorme pancada no coração alviazul. É difícil, mas o portelense tem que erguer a cabeça, ter orgulho de sua exibição e saber que nunca em todos esses anos de jejum o título esteve tão perto. Bola pra frente, gente. Não é hora de reclamar de jurado, nem de tentar desqualificar o resultado. É hora, sim, de sentir a dor da derrota, mas não deixar com que ela atrapalhe o próximo Carnaval que já bate à porta.

Falando rapidamente das demais escolas, a Beija-Flor fez um início de desfile campeão, mas depois fez jus a esse quinto lugar. E mais uma vez a escola faz de tudo para atrair a antipatia das demais dando, essa sim, um show de arrogância. Largando a apuração no meio do caminho, ironizando o júri e levantando suspeitas que poderia ter levantado dias ou até mesmo anos atrás. Se continuar agindo assim a cada derrota, a escola vai acabar em uma redoma onde vive falando e desfilando para si mesma. Não vai atrapalhar em nada porque ela se basta e tem uma força interna muito grande, mas não tem porque ganhar a antipatia dos torcedores rivais dessa forma. Já a Imperatriz, decepcionou mais uma vez em termos plásticos e o duplo sexto lugar pode ser um recado para Cahê Rodrigues ser mais aquele Cahê do fim da década passada e menos esse Cahê com propostas inovadoras que não vêm dando tão certo.

Recado também o júri enfim deu para a Grande Rio. O sétimo lugar ainda foi mais do que o desfile merecia, mas finalmente puniu a escola com uma ausência no desfile das campeãs. Vamos ver se agora a escola muda. Está precisando faz tempo. A Vila Isabel, ao meu ver, merecia uma vaga nesse desfile no lugar da Imperatriz. Um tapa na cara em todo mundo que achou que a escola andava mal das pernas. Tem que respeitar muito essa escola e esse povo que não silencia jamais.

Também fiquei muito feliz com o nono lugar da São Clemente. Em outros anos, mesmo com o lindo desfile que fez, os problemas enfrentados seriam suficientes para jogar a escola pelo menos em 11º – isso se não fosse rebaixada. O nono lugar, porém, foi o resultado mais justo e mostrou que a escola é respeitada pelo júri e que é vista com outros olhos. Esse ano não sobrou espaço, mas esse desfile, sem os problemas e em outros anos, teria voltado tranquilamente no sábado das campeãs. Me preocupou um pouco uma fala do Presidente Renatinho no Facebook: “Vai haver uma reciclagem geral”. Ele já avisou que os principais segmentos serão mantidos e, portanto, a mudança deve ser principalmente em harmonia e evolução, o que é ótimo. O meu receio é que a São Clemente queira também mudar a sua identidade. Seria péssimo pro Carnaval perder essa São Clemente brincalhona, leve, colorida e alegre e que já mostrou que pode com essas características chegar longe. Aguardemos.

mocidade2016cCrise de identidade, quem diria, sofre a Mocidade. Um Carnaval extremamente decepcionante em praticamente todos os quesitos fez o 10º lugar parecer lucro. Mais ou menos como a União da Ilha, que teve uma concepção de Carnaval surpreendentemente boa, mas que não foi nada bem realizada. Abrir segunda-feira também saiu barato graças ao empenho fantástico da comunidade insulana e da Baterilha. A Estácio fez bonito apesar das muitas falhas e brigou até o fim pela permanência, mas acabou sendo injustamente rebaixada. Na Série A, preciso ainda ver os desfiles do Império Serrano em diante, mas me parece, pelo que tenho lido, justo o acesso do Tuiuti, apesar da absurda diferença de pontos para as demais. Isso sem falar em coisas inacreditáveis como o 9,9 para o samba da Viradouro que mostra que o julgamento da Lierj ainda tem muitas falhas. Mas o fato é que a escola de São Cristóvão trilhou o caminho do Grupo Especial com muita competência e agora tem a quase impossível missão de se firmar na elite. Unidos de Padre Miguel, Viradouro e Império Serrano continuam mais um ano no segundo grupo, já despontando como maiores favoritas para o ano que vem. De resto, chama a atenção a evolução da Porto da Pedra de um ano para o outro e a Alegria da Zona Sul chegando ao G-10, bem como a Santa Cruz cada vez mais perto da Intendente Magalhães e a Caprichosos lamentavelmente desabando para lá.

É, acabou. Todo Carnaval tem seu fim e agora é hora de recarregar as energias porque daqui a pouco ele vem aí de novo. Enquanto isso, guardemos com carinho as lembranças de um desfile que entrou para a história e terminou, após 14 anos, com uma festa em verde e rosa.

10 Replies to “Uma noite de magia”

  1. leonardo, me tornei mangueirense em 1998, e o que me interessou pela aquela escola foi justamente a emoçao que ela transmitia, independente de ter ganho, e foi o que eu senti esse ano, nem em 2002 eu tinha percebido isso, eu acho que o tempo dirá se 2016 ficará para história como ano do renascimento do carnaval ou se foi simplesmente um canto do cisne, mas sendo mais amplo, imagine como será 2017, dependendo dos enredos com uma mangueira querendo provar que 2016 não foi apenas uma “noite de magia”, salgueiro, portela e beija flor, sedentas pelo título e uma vila renascida, sem citar as outras surpresas que podem aparecer, falta quanto mesmo pro carnaval do ano que vem…

    1. Pode até ser, mas de 1995 pra cá são mais 21 anos de jejum. Por isso a expectativa esse ano foi muito maior.

  2. Maravilha de texto, Léo!
    Análise perfeita de todas as escolas. Tivemos a mesma visão com as doze agremiações.
    O título da Mangueira foi surpreendente, e com certeza já entrou pra história do Carnaval Carioca. Surpresa também foi a colocação da Unidos da Tijuca. É claro que a escola fez um desfile correto e bonito, mas faltou o que sobrou no desfile da verde e rosa e da Portela: Emoção. Se ganhasse, seria injusto para os apaixonados pelo Carnaval. Como um tricolor de coração, sua comparação da expectativa em torno do título da Portela com a final da Libertadores 2008 foi de uma verdade que me impressionou. Foi exatamente isso que aconteceu em 2008 no Maracanã e agora, em 2016 na Marquês de Sapucaí. Seu texto enriqueceu o que de fato marcou o carnaval esse ano. E que venha 2017 com mais duas noites mágicas!

  3. Excelente texto Leonardo, foi realmente um Carnaval surpreendente e com um resultado, levando em conta os anos anteriores, também surpreendente.

    Repito o que disse em outro comentário, após o desfile achava que as melhores tinham sido Salgueiro, Portela e Mangueira, e que o título pra qualquer uma dessas três seria justo, porém uma dose de pessimismo me levava a acreditar que ele não iria para a Mangueira, o que só aumentou com Alegorias de último quesito. Só realmente passei a acreditar na hora do segundo 10 nesse quesito, quando estávamos a uma nota 10 do título. Que alívio ouvir o genial suspense do Perlingeiro terminar com um “dez!”

    Além das três escolas citadas, completariam minhas campeãs Tijuca, Beija e Imperatriz ou Vila. Concordo com a análise de todas as outras escolas, apesar de não ter achado a Ilha tão ruim assim, mas foi realmente inferior aos outros anos, pelo menos na parte visual e no enredo.

    Só achava que esses resultados, apesar do vice da Tijuca com um enredo muito fraco, levaria as escolas a capricharem mais ano que vem na escolha dos enredos e dos sambas, mas aí vem a Grande Rio e me anuncia Ivete Sangalo de enredo…

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