A Unidos de Padre Miguel definiu o enredo para 2017 e tem tudo para funcionar: “Ossain, o poder da cura”. Aguardarei a sinopse, mas a princípio se parece com o enredo de 2008 da Inocentes de Belford Roxo, que falava do poder de cura das folhas e tinha Ossain como um dos personagens principais: “Ewe (folha), a cura vem da floresta”. O tratamento do enredo da Inocentes, todavia, partia de Ossain para falar da cura pelas folhas de uma forma mais geral, chegando a abordar a tradição indígena e as rezadeiras do cristianismo popular. Parece-me que Padre Miguel falará exclusivamente do orixá iorubá. A ver.
Ao escolher Ossain como enredo, a Unidos de Padre Miguel embarca na tradição de temas monográficos sobre determinadas divindades africanas. A primeira escola a fazer isso, até onde as fontes permitem afirmar, foi o Arranco do Engenho de Dentro, que dedicou seu desfile de 1977 a Logunedé (Logun, o príncipe de Efan). Dois carnavais depois, a Imperatriz Leopoldinense veio com o enredo “Oxumarê, a Lenda do Arco-Íris”. Ultimamente, enredos monográficos sobre determinados orixás têm sido mais frequentes, sobretudo nos grupos de acesso. A própria Unidos de Padre Miguel louvou Xangô em 2013.
Mas quem é Ossain, um dos orixás mais misteriosos de todo o panteão nagô? Para isso, vale lembrar o seu mito mais famoso. Dizem que Ossain – que vivia pelas matas ao lado de seu escravo Aroni – recebeu de Olodumare, o deus maior, o conhecimento do mistério curativo das folhas. Guardou-as todas numa cabaça pendurada no galho de uma árvore. Um dia Iansã, muito curiosa, enfeitiçou os ventos para que eles derrubassem o galho da árvore e espalhassem as folhas sagradas pela floresta. Os demais orixás, então, recolheram determinadas folhas e passaram a considerá-las como suas.
Havia, porém, um problema. A folha só se transforma em remédio se for potencializada pela palavra e pelo canto. Só o encantamento pelo verbo é capaz de dotar a folha dos atributos de cura. A ausência da palavra não potencializa a folha. Um exemplo: a utilização do canto errado durante a maceração das folhas para a preparação do omi eró (o banho que acalma), ou não desperta a potência da folha ou transforma em veneno o que era para ser o bálsamo.
Os orixás, então, mesmo tendo recolhido as folhas que o vento de Iansã distribuiu, precisavam ainda de Ossain, porque só a ele Olodumare dera o conhecimento das palavras e dos cantos capazes de dotar as folhas do axé. E é essa a função de Ossain desde então: potencializar a folha pela palavra e dotar a planta da capacidade de vida e morte.
Ossain é, portanto, dos orixás mais perigosos, sedutores e desafiadores. É o senhor da expressão certa que cura e o conhecedor da palavra que, mal colocada, pode matar. Veneno e remédio, afinal, são irmãos. Ossain mostra o poder da palavra que vira poema, canto, evocação do mistério, libertação e vitalidade; e alerta para o poder da palavra que desarmoniza, é declaração de guerra, dureza de pedra, escravidão e perda do axé – a morte.
Paradoxalmente, por ser o dono da palavra que encanta, Ossain é um orixá de silêncios. Para ele os tambores batem ijexás e um ritmo chamado korin-ewé; o mais bonito dos nomes dos toques de orixá: cantar as folhas.
Eis o recado de Ossain: o peregum mais simples de um canteiro de rua se encanta com o canto exato – aquele que as mulheres e os homens aprenderam no tempo primordial em que conversávamos com as folhas – e é capaz, em sua simplicidade potente e misteriosa, de harmonizar a vida.
Que Padre Miguel nos encante em 2017.
Aquele carro alegórico da UPM em 2013 que tinha Xangô com Omulu foi de uma falta de tato tremenda do Carnavalesco, tanto é que o carro passou apagado na avenida!
Vou pedir ao Carnavalesco da UPM para ler esse texto do Simas. O enredo está todo aqui, sinopse perfeita… rs.