(Felipe Alves é especialista em Relações Internacionais)
No dia 7 de fevereiro um dos grandes intelectuais do século XX nos deixou. Tzvetan Todorov nasceu na Bulgária, quando a barbárie aparecia pela segunda vez na Era dos Extremos, em 1939.
Filósofo e linguista, foi professor em Yale e na École Pratique de Hautes Études. Suas obras têm em comum a estudo da alteridade e da relação dos sujeitos em grupos sociais. Uma dessas grandes obras é “O Medo dos Bárbaros”, que nos diz muito sobre bombas e muros que ganham protagonismo nos últimos anos.
Esse livro surge da percepção do autor que “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros”. Para isso, reflete acerca das noções de barbárie e civilização, cultura e identidade coletiva, buscando interpretar os conflitos entre Ocidente e o resto do mundo. Esse conflito seria uma luta desigual, na qual os desfavorecidos são motivados por inveja e rejeição, enquanto os favorecidos mantêm desdém, condescendência ou compaixão.
Em uma nova proposta de divisão global, Todorov separa os países em quatro grupos. O primeiro é dominado pelo sentimento de apetite, e se sente descartado na distribuição das riquezas. O segundo grupo caracteriza-se pelo ressentimento, “atitude que resulta de uma humilhação, real ou imaginária, que lhe teria sido infligida pelos países mais ricos e mais poderosos”. Seria o caso dos países de maioria muçulmana. O terceiro grupo de países distingue-se pelo medo. Medo da força econômica dos “países do apetite”, e medo de ataques dos “países do ressentimento”. Por fim, o último grupo é definido pela indecisão. Países que transitam entre o apetite e o ressentimento.
Aqui o filósofo procura demonstrar uma estrutura global que permite e estimula o conflito entre as nações. A percepção no interior das nações dessa estrutura conflituosa promove o medo generalizado e a sensação constante de ameaça externa. Daí surgem as bombas, os muros, e a barbárie. “Esse medo é o que ameaça converter-nos em bárbaros”.
Na tentativa de curar essa doença percebida da ameaça externa, podemos criar remédios piores que a enfermidade, alerta Todorov, a exemplo dos totalitarismos do século XX.
O combate à barbárie pode nos aproximar da barbárie. Todo terrorista entende-se como um contraterrorista. O homem-bomba muçulmano entende ser alvo do terror do Grande Satã, e o presidente dos Estados Unidos entende ser alvo de uma investida islâmica. Esse exemplo mostra algo interessante: talvez ambos estejam certos, ou errados.
Talvez tenhamos construído relações dentro da barbárie em nome de uma suposta civilização. Romain Gary escreveu: “esse aspecto desumano faz parte do ser humano. Enquanto não reconhecermos que a desumanidade é coisa humana, vamos permanecer em um bem intencionado equívoco”.
A relação entre civilização e barbárie é bastante íntima. Ao definir um desses conceitos, dizemos o que é o outro. Para o búlgaro, a barbárie é o não reconhecimento da humanidade do outro. Portanto, a civilização é o reconhecimento da humanidade do outro, que se torna, destarte, minimamente um semelhante. Os bárbaros são assimiláveis aos animais, pois são incapazes de refletir, de negociar (preferem a briga); também são indignos de viver em liberdade (devem permanecer como súditos); e ignoram a vida social regida por leis comuns.
Observamos essas ideias na retórica ocidental do século XVI em relação aos ameríndios, e em 2017 em relação aos muçulmanos. Mas não podemos cair na cilada de atribuir esse discurso exclusivamente ao Ocidente. Cognitivamente, o pensamento binário, por vezes maniqueísta, é mais vantajoso ao Homo Sapiens, e, portanto, bastante comum.
Diversas culturas adotam esse discurso. Como contraposição, no coração do Ocidente Montaigne escreveu o que seria lido por muitos pós-modernos: “Nada há de selvagem nem de bárbaro nesta nação [canibais ameríndios], se dou crédito ao que me foi relatado a seu respeito, a não ser o fato de que cada um designa por barbárie o que não faz parte de seus costumes”.
O relativismo proposto por Montaigne é bastante importante, mas deve ser limitado. A lógica é delicada: todas as culturas se entendem como civilizadas, e entendem o diferente como bárbaro; portanto, não há barbárie em termos absolutos. Isso significa que não temos padrões para julgar atos bárbaros? Não há barbárie? Nem em atentados terroristas ou genocídios? Aqui Todorov se faz valioso.
O autor nos diz que um dos caminhos para avançar da barbárie em direção à civilização consiste na empatia, na capacidade de enxergar, de forma crítica, não só as práticas dos outros, mas também as próprias práticas. Isso está diretamente relacionado à possibilidade de não se reconhecer como única civilização possível, reconhecendo nossa comum humanidade. Esse posicionamento permite identificar, de forma honesta, atos bárbaros (de não reconhecimento da humanidade comum).
Não, Todorov não diz como acabar com o terrorismo, com a xenofobia ou com as guerras. O que Todorov faz é alertar-nos sobre a tenuidade da linha que separa – ou une – civilização e barbárie. Alerta-nos sobre a relatividade da ideia de civilização. Indica-nos que há, sim, um padrão para identificar a barbárie, e esse padrão é o reconhecimento da humanidade.
Tzvetan Todorov não está mais entre nós, mas o resgate de suas ideias é uma necessidade dos nossos tempos complexos e atônitos.
Imagens: Reprodução e Arquivo Ouro de Tolo
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