“Que no Brasil o que é sério é Carnaval”.
O verso da São Clemente 2004 [1] sempre foi cantado com orgulho pelos sambistas. Uma espécie de desafogo contra o preconceito. E, ao mesmo tempo, uma valorização dessa festa tão nossa e pela qual temos (tínhamos) tanto orgulho e respeito.
“E o samba sambou”.
O verso da mesma São Clemente 1990 se sobrepôs a qualquer orgulho no peito do sambista depois desse interminável Carnaval 2017. Não, diante do que vimos, o Carnaval não é sério.
Esta semana o Flamengo deu entrada em nova ação junto ao Supremo Tribunal Federal para reconhecimento do título brasileiro de 1987. Lá se vão trinta anos e essa lenga-lenga de quem é o “verdadeiro” campeão se arrasta. E por mais argumentos que se debatam aqui e ali é difícil, diria impossível, convencer o rubro-negro carioca de que o detentor do título é rubro-negro pernambucano e vice-versa. Bem, a Justiça vai a volta. A CBF já disse que sim mas também que não. E o que temos são dois campeões com asterisco. Flamengo Campeão 87*. Sport Campeão de 87*.
A LIESA decretou, também esta semana, que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro aderiu ao modismo. Até a eternidade teremos Portela e Mocidade com uma estrelinha (aqui não vai nenhum ironia com o símbolo máximo da agremiação de Padre Miguel) ao lado de seus nomes e do ano da Graça do Senhor de 2017.
Não vim aqui para defender A ou B, P ou M, águia ou estrela, azul ou verde. Li, reli, treli todas as defesas e ataques. E há pontos coerentes em todas as argumentações. Erro de fato versus erro de direito. Vale o escrito. Quem levou mais notas máximas. O que é ou não é critério. O que deveria ser mas não é. O que é mas não deveria ser. Abriu-se um precedente. Revisionismo de todos os resultados anteriores, então!
Tudo isso é chorar sobre leite derramado. A meu ver a discussão precisa ser outra.
Até porque a decisão da divisão foi mais política do que técnica. Ela apenas se amparou na técnica, teve verniz de justiça. Mas o martelo foi batido mesmo nos bastidores do toma lá dá cá. O método precisa ser revisto. O poder de escolha e decisão da Liga precisa ser questionado.
Sempre houve protestos sobre resultados do Carnaval. De Natal a Messias Neiva, passando por Marina Montini e Brizola. Aquela nota 6 que ninguém entendeu. Aquela justificativa que não se aplica ao que se viu. Também quando o poder público escolhia o júri. De modo que é ilusório achar que uma fórmula mágica acabará com descontentamentos pós-julgamento. Porém, algumas medidas de transparência podem, sim, ser tomadas.
Uma delas é debater seriamente a questão dos descartes. Por que há descartes hoje em dia? Porque, de antemão, a organizadora dos desfiles admite a possibilidade de um ou mais jurados pesarem a mão de propósito contra determinada(s) escola(s)? Quer dizer que a própria Liga acha que não pode controlar seu júri? Não é capaz de afastá-lo da tentação da corrupção? Qual o verdadeiro motivo do descarte?
Um desfile tão complexo e cheio de detalhes nas mãos de três pessoas por quesito me parece pouco. Se há os reservas que se usem todos como titulares então. E descarte-se, vá lá, maior e menor de seis notas. Embora o ideal, mesmo, fosse ter confiança de que aquelas notas serão sérias e fundamentadas.
Outro ponto. O jurado vê o desfile de domingo e só fecha as notas no fim da segunda-feira. Ele é influenciável ao que se passou domingo! Claro! Quem hoje em dia não tem celular, aplicativo de mensagem, rede social? Por favor… As escolas de domingo (ou sexta, no caso do Acesso) são visivelmente prejudicadas. A que abre o desfile do Especial é sempre espancada! Não pode.
Porque o método – fiscalizador de erros – não condiz com a forma – esperar todo mundo para dosar de quem você tira mais ou menos. Se é para tirar décimo por causa de um laptop esquecido sobre o carro ou a falta de um destaque você não precisa esperar outra escola passar. Você tira o que tem que descontar, baseado na fiscalização de erros, dá sua nota, fecha o envelope, lacra e parte para a próxima. Não dá é para ir vendo os erros e mais de 24 horas depois aumentar ou diminuir a nota daquela primeira escola que você viu passar.
O curso de jurados é outro ponto. Como disse, o julgamento não é artístico, cênico, musical. É uma grande busca de pelo em ovo. O jurado fica usando binóculo para procurar um chinelo esquecido sobre a alegoria. E não dá a mínima para a concepção artística da mesma. A série “Justificando o Injustificável” é brilhante ao analisar as pseudojustificativas.
A maneira de interpretar o espetáculo está equivocada. E nisso a LIESA tem toda a culpa. Porque cabe a ela escolher, treinar e cobrar dos jurados os resultados. Chuvas de notas dez de um lado, erros crassos de dosimetria e a falta de clareza do que se está julgando, com observações que até seriam pertinentes a determinado quesito “justificando” notas em outro. Talvez o ideal mesmo fosse radicalizar e trocar 100% do corpo de jurados a cada ano. Muita gente acomodada, com olhar viciado, devendo favores, fazendo média.
O debate se alongaria mais e mais porque o que não falta é sugestão para melhorar o julgamento. Falta abertura, debate, transparência, vontade. Que este carnaval de atropelamentos, desmoronamentos, desmandos, viradas de mesa, clamor por justiça, lamentos traga, nem que seja pelo medo do descrédito total e absoluto, um sopro de mudança aos homens que comandam nossa maior festa popular e parecem devotados a acabar com ela.
As Cinzas dessa quarta-feira que não quer terminar estão espalhadas pelo chão.
São do filme queimado de cenas que não queremos rever.
[N.do.E.: vale lembrar que este verso da São Clemente embute uma grande ironia, pois a escola só estava no Especial graças a uma subida bastante contestada ano anterior. O vídeo acima deixa mais claras as coisas. PM]
Imagens: Arquivo Ouro de Tolo
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Sabe o que eu acho mais engraçado nessa história? Até agora não se tem clareza do que aconteceu. A Liesa não assume um possível erro, apenas dá a entender, mas sem uma nota oficial, um “ok, erramos”. O mesmo para o jurado. Pelo contrário, tentou até jogar a culpa para a Mocidade. Seja qual for a decisão definitiva, perde-se uma ótima oportunidade de, como disse o Gil, repensar o Carnaval em todos os sentidos, porque esse ano foi f…
falta alguem tipo bocão da vila para falar isso para liesa rssss
Hoje reclamar seus direitos é “mimimi”… #ironicmodeon
Não gosto de comparar o julgamento de São Paulo com o do Rio de Janeiro porque são universos totalmente diferentes, mas nesse caso eu acho que vale: esse ano todo o corpo de jurados foi modificado e todos os critérios de julgamento foram revistos. Terá sido coincidência que justamente nesse ano duas escolas de menor expressão (Tatuapé e Dragões) tenham brigado ponto a ponto pelo título? Afirmo com certa segurança que não. Oxigenar o júri é essencial. Não dizem que o julgador não deve levar em conta seu gosto pessoal? Então aual o problema de se trocar todo ano? “Dá na mesma” (nesse sentido) e impede tais vícios. Pena que não vai acontecer.
Eu acho que a mudança no julgamento abarca muito mais que isso, mas uma troca generalizada já ajudaria
Depende da troca né? Se for igual 2014 para 2015…
Também acho que teria que ter uma mudança em muitos outros fatores além dos julgadores e até mesmo nos critérios. Urge um amplo debate com quem realmente vive o carnaval o ano inteiro (imprensa, escolas, “sambeiros”…) para a troca e futura utilização de ideias para fortalecer o Carnaval, e não mutilá-lo. Aí sim seria um bom início…
Eu escrevi uma série sobre os critérios de julgamento em 2012. Não mudo uma vírgula do que escrevi naquela ocasião
Aqui no Rio em 2015 metade do juri foi trocado de uma vez só. Resultado: Beija-flor camp~ea 4 décimos a frente do Salgueiro, Grande Rio em 3° de novo com um desfile de no máximo 6°, São Clemente naquela zona da marola de sempre e a escola que subiu rebaixada sem dó (se bem que dessa vez era complicado dar outro resultado).
Ouso arriscar que aqui no Rio muda os 36 julgadores e fica tudo na mesma.
Bem lembrado, Rafic. Mas a troca de 2015 foi muito mais em função dos protestos de uma esdcola específica – a Beija-Flor – do que uma movimentação visando à melhoria do critério de julgamento. Não creio que somente o fato de o Poder Público assumir o controle livraria a apuração de resultados incoerentes. Tanto que, no passado, e com a Riotur, os resultados também eram contestados. No entanto, veria com bons olhos – e como uma tentativa desesperada – a reformulação de 100% do quadro. Com a Prefeitura indicando todos os nomes. E que estes nomes fossem divulgados com clareza, com base em currículo, com jurados de reconhecida afinidade com a festa.
Tendo a concordar com o Rafic no sentio que a troca geral terá um alcance bastante limitado. A troca de 2015 foi devido à insatisfação de Beija Flor e Grande Rio com o resultado, especialmente depois de uns 9,5 muito merecidos em samba enredo naquela ocasião.