“A guerra é o domínio da incerteza. Três quartos dos fatores em que baseiam-se os combates na guerra estão envoltos numa névoa de maior ou menor incerteza. É necessário um discernimento sensível e perspicaz e uma exímia inteligência para descobrir a verdade”. Carl Von Clausewitz, em Da Guerra.
Na última semana, a comunidade internacional voltou seus olhos para os ataques americanos a bases sírias, em retaliação ao uso de armas químicas contra os civis por parte do governo de Bashar al-Assad – o que ainda não foi comprovado, apesar dos fortes indícios.
Diversas análises foram feitas, mas alguns pontos parecem obscuros: as intenções que motivam as ações de Rússia e Estados Unidos nesse conflito. O propósito deste texto é iluminar, mesmo que parcialmente, os objetivos destes Estados na Síria, analisando o perfil das administrações de Donald Trump e Vladimir Putin. É importante ressaltar que o texto não se propõe a esgotar as reflexões acerca do tema, mas levantar pontos relevantes que subsidiam as análises.
Em 2013, Obama decidiu não intervir na Síria após o primeiro caso de uso de armas químicas pelas tropas de Assad. Em 2014, passou a liderar uma coalizão internacional de bombardeios às bases do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, sem soldados no chão. Essa relativa passividade foi alvo de críticas internacionais e domésticas. Todavia, a opinião pública americana já estava impaciente com tropas no Afeganistão, e não tolerariam, na visão do ex-presidente, uma nova intervenção militar.
Diante dessas dificuldades, Trump teve sucesso com um discurso isolacionista nas eleições passadas, com o slogan “America First”. Aproximou-se – talvez mais do que deveria – de Vladimir Putin, indicando uma grande mudança em relação à política externa da gestão anterior.
Exatamente uma semana antes dos ataques de mísseis Tomahawk, o Secretário de Estado Rex Tillerson declarou que, em longo prazo, o destino de Bashar al-Assad deverá ser decidido pelo povo sírio. Em entrevista à CNN, um oficial do governo afirmou que as prioridades da administração não seriam exclusivamente sobre Assad, mas sobre derrotar o EI, deter a influência do Irã, proteger os interesses dos aliados na região e tentar acabar com a guerra civil na Síria. Ou seja, um ataque americano a tropas sírias era extremamente improvável.
Essa mudança brusca de Donald Trump se deve à aparente falta de estratégia para a Síria. Quais são os interesses nacionais naquele país, e na região? Quais são os principais condicionantes estruturais e conjunturais desse cenário? Qual política externa desenvolver para atingir determinados objetivos? Quais são as alternativas ao plano principal? Essas são perguntas respondidas nebulosamente pela administração, e à medida que o empresário se depara com as surpresas da realidade das relações internacionais, promove redirecionamentos em sua posição.
Se o presidente americano parece não ter clareza em sua estratégia para a Síria, Putin tem isso bem claro. Desde 1971, a Rússia – herdando da União Soviética – utiliza a base de Tartus, que dá o único acesso direto russo ao Mediterrâneo (o acesso indireto é através da Crimeia, atravessando o Mar Negro e o Mármara). Há também a necessidade de afirmar-se como potência mundial. Para Putin, “o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século”. Portanto, leva adiante uma política de expansão da influência nacional, buscando retomar ou reafirmar seu status de potência mundial, haja vista as dificuldades em manter amarras na Ucrânia, ao mesmo tempo em que sofre com sanções econômicas pela invasão à Crimeia.
Na disputa por influência contra o ocidente, surge o propósito de conter o avanço Ocidental em direção à Rússia. Petr Fedorov, Diretor do Departamento de Relações Internacionais do canal Rossiya-1, em entrevista à Carta Capital, disse: “Se derrubarem Assad, depois vão atrás do Irã e das ex-repúblicas soviéticas. E depois vão para onde?”. Paralelamente, há o interesse em fortalecer a popularidade doméstica de Putin em um cenário de crise econômica. Por fim, o controle da situação na Síria seria importante para conter o fluxo de movimentos radicais para fronteiras sensíveis, como as do Cáucaso. Diante de todos esses objetivos, entende-se o interesse russo em manter Bashar al-Assad, um aliado, no poder.
Essas definições dão os delineamentos da reação do Kremlin ao ataque americano. Este, classificado por Putin como uma “agressão a um Estado soberano”, que “viola as normas do direito internacional”, baseado em pretextos inventados (a Rússia diz que o governo sírio não utilizou armas químicas contra a população). Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin disse que o movimento de Washington prejudica consideravelmente as já “lamentáveis” relações entre Rússia e EUA. Igor Konachenkov, porta-voz do exército russo, disse que adotarão uma série de medidas para melhorar a eficácia do sistema de defesa antiaérea das Forças Armadas sírias. A Rússia também já convocou uma reunião emergencial do Conselho de Segurança, para discutir o assunto, e se portar como defensora dos direitos humanos e da soberania.
A grande questão é saber qual será a postura de Donald Trump diante de toda essa movimentação no sistema internacional. Qual era a intenção do presidente ao autorizar o ataque? Para Richard Clarke, secretário de Estado assistente dos EUA para Assuntos Político-Militares entre 1989 e 1992 (administração de George H. W. Bush), o ataque não foi desenhado para comprometer o aparelho militar sírio. A intenção de Trump seria se diferenciar de Obama, configurando, então, uma política de governo, e não de Estado.
Outro fator importante no processo decisório do caso em questão é a influência da burocracia americana. A gestão Obama entendia que a intervenção militar era inviável, ainda mais após a entrada de tropas russas em território sírio. Todavia, aptou por uma postura demasiadamente omissiva, o que gerou críticas até de pensadores isolacionistas. Trump, que ainda passa por um extenso handover da burocracia americana envolvida em política externa, poderia entender que para manter minimamente o status de superpotência seria necessário demonstrar a presença americana, mesmo que de forma simbólica. A ideia, assim como no caso russo, seria fazer ver que os Estados Unidos continuam vigilantes da ordem internacional, sem despender grandes recursos financeiros e humanos para isso. Nesse sentido, Trump atende às demandas isolacionistas sem abandonar a ordem internacional ao sabor dos acontecimentos e da vontade de Estados rivais.
Além das hipóteses acerca do processo decisório e das motivações do ataque americano, os analistas também têm outras perguntas a responder. O impacto desse ataque é proporcional ao alarde feito? A relevância do ato está nas consequências no conflito sírio ou na mensagem transmitida pelos Estados Unidos? Trump conseguirá levar adiante uma política externa personalista, ou as demandas da política internacional moldarão sua postura nos conformes da tradição de política externa americana? Surgirá agora uma nova doutrina de política externa americana? Presenciamos o fim da guerra preventiva e o início das intervenções pontuais? Muito cedo para todas elas, mas são perguntas que devem ser feitas.
De todas as incertezas levantadas sobre o conflito na Síria, destaca-se uma única afirmação: muitas vidas ainda serão levadas ainda. Nenhum acordo de paz parece ser possível, a cooperação entre EUA e Rússia está debilitada por enquanto, e o Conselho de Segurança mais uma vez entra em estado de congelamento.
As torcidas ideológicas são absolutamente inúteis em tempos que mulheres, homens e crianças morrem pelas mãos da tirania e da ganância, resguardadas pela hipocrisia moral do mundo. É necessário estratégia para lidar com os conflitos internacionais cada vez mais complexos, e resta saber se Donald Trump terá articulação para estabelecer e manter minimamente a estabilidade da ordem mundial.
Imagens: Getty, ONU/Acnur/Qusai Alazroni e BBC
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