Retomando o artigo de ontem.

A partir daí, os Estados Unidos, que já tinham pequenos sinais de que uma divisão mais profunda da sociedade estava prestes a ocorrer, intensificou tal processo e mesmo os políticos então mais moderados do Partido Republicano, percebendo a possibilidade de dividendos eleitorais, embarcaram nessa oposição ferrenha, travando por seis anos no Legislativo qualquer tentativa de mudança nas leis feita pelo Governo Obama.

A cada dia desses seis anos, a divisão da sociedade ficou cada vez mais profunda e a base do Partido Republicano cada vez mais puxando o partido para uma linha nacional-conservadora cristã. Nesse meio tempo, o movimento supremacista branco, que nunca morreu no sul-sudeste dos Estados Unidos, perdeu a vergonha de se expressar em público; comentários racistas, que há pouco tempo eram inimagináveis, porque mesmo se alguém pensasse teria vergonha em falar, passaram a voltar a ser vistos – especialmente se fosse para injuriar o então Presidente Obama.

Essa base ultra nacional-conservadora tomou o Partido Republicano e, contra a vontade do “estabilishment” do Partido, conseguiu colocar Trump como candidato a Presidente. Para piorar a situação, em uma eleição cheia de polêmicas e que está sendo investigada até hoje por influência estrangeira, Trump foi eleito. Para aumentar ainda mais a fratura social, graças ao sistema americano de eleição presidencial, Trump ganhou o cargo mesmo tendo 3 milhões a menos de votos que sua adversária.

Obs: o “estabilishment” do partido está pagando um preço caro por ter aderido à onda de oposição total e está perdendo completamente o controle do partido para Trump e seu ex-estrategista Steve Bannon.

O problema dessa fratura social já ocupa uma das primeiras posições de discussão na opinião pública americana e a mesma começa a se preocupar com o futuro do país caso continue a caminhar nessa linha. Porém, Trump sabe que só foi eleito graças a ela e faz questão de aumentá-la a todo momento.

Ao invés de, como presidente de toda nação, fazer discursos e atos que promovam a união, ele cotidianamente entra em polêmicas desnecessárias, entre elas várias sobre a questão racial.

Ainda na campanha eleitoral Trump relutou muito em criticar publicamente a Ku Klux Klan, a centenária organização de defesa da supremacia branca americana, e seu principal dirigente. Mesmo quando o finalmente o fez, foi de forma tímida.

Poucas semanas antes do episódio com a NFL, outro episódio relacionado a racismo ficou dias em voga na imprensa americana.

Durante protestos contrários a retirada de uma estátua de Robert E. Lee, principal general dos Estados Confederados na Guerra de Secessão (o lado escravocrata), da cidade média de Charlottesville, na Virgínia, um supremacista branco atropelou propositadamente vários “contra-protestantes”, matando uma pessoa e ferindo outras 19, três de forma grave.

Sobre o triste episódio, Trump fez um pronunciamento no mesmo sábado, apenas duas horas depois do ocorrido onde ele condenou “essa completa demonstração de ódio, intolerância e violência de vários lados”. Para piorar ele enfatizou o “vários lados” duas vezes e emendou que o que era vital no momento era a “restauração da lei e da ordem”.

O pronunciamento foi metralhado até por republicanos moderados por citar que a violência e o ódio foram cometidos por “vários lados”, quando na verdade apenas o lado supremacista utilizou da violência. Para piorar, a citação a “lei e a ordem” logo após a citação aos “vários lados” dá a impressão que anti-supremacistas também estavam errados.

Após esse desastre de pronunciamento, ele fez ainda um segundo pronunciamento na segunda-feira, um pouco mais enfático contra os supremacistas brancos, mas ainda não convincente.

Ainda tentando remendar o estrago das declarações de sábado, na terça-feira Trump leu um pronunciamento preparado por sua assessoria. O pronunciamento condenou de forma enfática o racismo e a violência do sábado, mas claramente a expressão de Trump lendo aquilo não era das mais felizes e dava a dúvida se ele realmente concordava com o que estava lendo.

Reforçando essa impressão, logo após o pronunciamento, Trump permitiu perguntas da imprensa e durante essas respostas reenfatizou sua visão dos “vários lados” e para finalizar ainda condenou “a muito, muito violenta esquerda alternativa”, em uma referência aos “contra-protestantes”.

Depois dessa o estrago foi irremediável. E a condenação foi generalizada entre políticos de ambos os partidos e até do Presidente da Câmara dos Deputados.

Foi nesse contexto que se interpretou a fala de Trump contra os jogadores da NFL, especialmente o expletivo utilizado, tão incomum em pronunciamentos públicos, ainda mais por alguém que é o atual supremo comandante da nação.

Para aumentar o contexto racista, isso foi dito em um comício político no estado de Alabama, exatamente onde fica Selma, um dos estados mais racistas dos Estados Unidos, para ocupar a vaga deixada pelo atual advogado-geral (algo parecido com o Ministro da Justiça, só que bem mais poderoso) de Trump, Jeff Sessions, ele mesmo acusado de racismo por várias vezes em sua vida política.

Não se pode esquecer que a maioria dos jogadores da NFL são negros de origem pobre ou de classe média baixa e a quase totalidade dos donos de times são brancos – muitos deles ricos de berço tais como Trump.

Foi essa constante tendência de abertura ainda maior na fratura social dos Estados Unidos por parte de Trump que fez a conservadora (mas não extremada) casta dirigente da NFL se unir aos jogadores passando uma mensagem de união nacional e não incomodando os jogadores que tenham uma postura de protesto ao hino americano.

Por fim, mas não menos importante, outro ponto não comentado mas que deve ter irritado bastante os donos de time da NFL é que eles, que também não gostam desse protesto especialmente no momento do hino,  estavam resolvendo a situação do jeito “mineiro” deles.

O Colin Kaepernick, aquele que começou com tudo isso, optou por sair de seu contrato com o time de San Francisco ao fim da temporada passada e até hoje, já na 4ª semana da temporada atual, não conseguiu contrato com nenhum time, sendo que tranquilamente ele é um dos 20 melhores de sua posição em uma liga que tem 32 times!

Quando ninguém menos que Trump, com todo o contexto aqui já explicado, fala sobre esses protestos na NFL, ainda mais da forma tão grosseira como foi, ele jogou todo o holofote da opinião pública sobre a questão e impediu da NFL continuar essa forma de repressão “silenciosa” sem criar ainda mais polêmica. A polêmica política em uma sociedade polarizada afasta fãs – e fãs afastados representam menos dinheiro para os times.

Da mesma forma, uma fratura social como a que se anuncia nos Estados Unidos também tem o potencial de tirar fãs do esportes no longo prazo, seja de um lado ou de outro. Em uma sociedade altamente polarizada, como estamos percebemos inclusive no Brasil, ser neutro não é uma opção, porque o neutro é percebido como inimigo de ambos os lados.

Esse é o dilema dos dirigentes da NFL e é por isso que, do nada, eles se voltaram contra Trump.

[N.do.E.: há disponível no Netflix, em português, um ótimo documentário para se entender esta questão e especialmente o que levou Colin Kaepernick a protestar. Chama-se “13ª Emenda”. PM]

Imagens: AP, NY Daily News, Variety

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One Reply to “Racismo, Trump e NFL: Parte II”

  1. Excelente texto! Extremamente pertinente para se entender a NFL atual e seu desenvolvimento extra-campo.

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