Numa de minhas últimas contribuições sazonais – em muito devido à distância transoceânica – falava do bem que via na volta de enredos de temática política/crítica à Sapucaí. O texto era anterior ao desfile de 2019. Desfile que coroou a Mangueira de forma, a meu ver, justíssima.

Foi o triunfo do enredo. Mas também do samba enredo, que carregou a escola no colo e a colocou, embalada e embrulhada em verde e rosa, nos braços do povo. Além, claro, da vitória de um projeto de carnaval muitíssimo bem desenvolvido por Leandro Vieira.

A tendência se manteve para 2020. Com a própria Mangueira. Mas também de modo mais entranhado, poético, carnavalizado. A São Clemente segue sua linha crítico-humorística. E, ainda que decisões políticas de sua diretoria no caso da virada-desvirada de mesa, entrem em choque com esse tipo de posicionamento, o trabalho do carnavalesco Jorge Silveira e dos compositores segue dentro de um padrão de bom nível e compatível com o DNA da escola – o que me parece extremamente relevante no universo das escolas de samba.

Então, se partirmos de São Clemente e Mangueira – pela ordem de divulgação dos enredos – e olharmos com atenção para tantas outras escolas veremos tintas políticas, críticas, sociais, “engajadas”, bandeiras erguidas em praticamente todos os enredos. E isso teve efeito bastante positivo na safra de sambas concorrentes.

Enredos que primam por pesquisas interessantíssimas e sinopses com grandes cargas de emoção não passam em branco ao questionar o racismo e as desigualdades. O que se vê, por exemplo, nas histórias que serão contadas e cantadas por Viradouro e Mocidade Independente. Nas duas agremiações a disputa é em alto nível e ambas têm nas mãos a chance de escolher uma trilha sonora marcante para seus desfiles em 2020.

E acho que o mesmo se aplica ao Salgueiro. É um excelente enredo – que já fora apresentado pela São Clemente, em 2009 (com um samba que muito me agrada mas que não “aconteceu” num desfile frio, talvez por ter sido o que abriu a Série A daquele ano). O primeiro palhaço negro do Brasil, Benjamim de Oliveira, também traz um libelo de defesa da liberdade e um grito contra a discriminação. E vejo algumas obras de muito bom nível também na disputa interna salgueirense.

Se dermos um mergulho – e nem é preciso ir tão fundo – também enxergaremos, de forma cristalina, a defesa do meio ambiente e das populações indígenas na bonita sinopse do casal Lage na Portela. Prenúncio de boas obras pelos lados de Oswaldo Cruz e Madureira.

O Tuiuti não abandonou o modelo, apostando em time que está ganhando. Tanto na encomenda do samba quanto na temática “politizada” de seu enredo – ainda que com novo carnavalesco.

E o que dizer, então, da pedrada que pode vir de Duque de Caxias? Uma Grande Rio se reencontrando com seus melhores momentos – e sambas. Um senhor enredo, necessário, coerente, o que fala de Joãozinho da Gomeia e da importância da cultura e da religiosidade afro-brasileira na Baixada Fluminense. Muita expectativa para o que a talentosa dupla Haddad-Bora vai trazer para a Sapucaí nessa estreia deles no Grupo Especial.

Beija-Flor e União da Ilha, com temáticas que, a princípio, se assemelham muito, não deixam de beber dessa fonte ao optar por cantar o povo da rua, as entidades dentro do desenvolvimento de seus roteiros de desfile.

À primeira vista seriam apenas três os enredos que passarão pelo Grupo sem ao menos tangenciar alguma questão social – seja o racismo, a intolerância religiosa, o extermínio dos povos indígenas, a sátira política. Seriam eles os de Vila Isabel, Estácio de Sá e Unidos da Tijuca. E, mesmo assim, há margem para a inclusão de abordagens políticas.

A Tijuca, com Paulo Barros de volta, divulgou que falará de “Arquitetura e Urbanismo”. Este é o tema. O desenvolvimento pode até entrar por um lado mais social – como fez a Viradouro de Milton Cunha ao apresentar temática semelhante (“Arquitetando folias”, 2006). Contemplou-se a arquitetura das favelas naquela ocasião, abrindo espaço para um debate sobre moradia – ou sobre más condições de moradia.  É esperar para ver o olhar da recém retomada parceria Barros-Tijuca sobre o tema.

O “Pedra” de Rosa Magalhães é um daqueles trabalhos em que a professora promete tirar leite do que virou enredo. Com apoio (vai vir?) da cidade paraense de Parauapebas, a sinopse fala da mineração, da exploração das riquezas da terra – e em alguns pontos é possível esse mini desvio, nem que seja para analisar a exploração do ouro, pedras preciosas e até mesmo o garimpo ilegal que devasta parte da Amazônia.

Por fim, chegamos à Vila Isabel. No ano passado, optando pela louvação e fidelidade à história oficial, fez uma linda apresentação sobre Petrópolis. Este ano tem o enredo que considero o mais espinhoso do grupo principal. Brasília. Não apenas porque já foi enredo (Beija-Flor, há dez anos), mas por tudo o que envolve e simboliza a capital federal. A homenagem foi empacotada num contexto de lenda indígena. Possivelmente até para evitar um discurso político.

Mas adotar o não-discurso é, também, se posicionar. Se passar pela avenida de forma laudatória, tentando criar uma redoma que a afaste da política, a Vila pode estar criando uma armadilha para si mesma. Por não querer se comprometer pode comprometer o trabalho de um ano inteiro.

Prometo voltar ao tema para falar dos enredos da Série A.

Imagens: Ouro de Tolo e Divulgação