Neste ano, Samba-Enredo pouco ou nada decidiu. Os julgadores deram a maior quantidade de notas 10 da história da Justificando o Injustificável. Nada menos que 27 das 46 notas foram notas máximas, ou 59%. Porcentagem bastante superior aos 47% do ano passado, mesmo após o corte do julgador historicamente mais prolífico em notas 10 até 2022. A situação foi tão extrema que nem o complicadíssimo julgamento de 2015 igualou a marca, ficando uma nota 10 atrás com 26.

Ao mesmo tempo, também pela 1ª vez desde 2018, o 9,7 não existiu em todo o mapa de notas do quesito. A safra como um todo está tão boa, ou pelo menos homogênea para justificar essas estatísticas? Ou as fortes críticas ao julgamento do ano passado fizeram o júri abrandar o peso do julgamento, mesmo que de forma inconsciente?

O que posso afirmar é que 3 dos 4 julgadores deram a maior quantidade de notas 10 de toda sua carreira e o 4º ficou a apenas um 10 de igualar seu próprio recorde histórico.

Módulo 1

Julgador: Alfredo Del-Penho

  • Império – 9,9 (letra 4,9)
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,9 (melodia 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,9 (letra 4,9)
  • Salgueiro – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 10
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Viradouro – 10

O festival de notas 10 já começa pelo próprio Del-Penho. Suas sete notas 10 igualaram seu recorde de 2017. Concordo que a safra deste ano como um todo era pouco inspirada, mas fico me perguntando se 7 sambas se igualavam merecendo a nota máxima. Grande Rio, Mangueira, Tuiuti, Portela, Imperatriz, Beija-Flor e Viradouro são todos sambas de mesmo patamar? É perfeitamente possível que o julgador tenha tido essa impressão, mas não sei se reflete a diferença da beleza e riqueza de letra e melodia dos diferentes sambas.

Aqui vale a mesma observação que fiz em Enredo: faltou uma prateleira a mais para organizar melhor as diferentes escolas. Talvez se o piso de notas fosse 9,7 algumas escolas poderiam acabar caindo da prateleira 10 para a 9,9.

Em relação às justificativas em si, esse ano acredito que, salvo na Unidos da Tijuca, Del-Penho foi bastante claro em todas as justificativas escritas, mesmo que eu tenha sentido falta daquela justificativa especial de todo ano que explica de forma técnica os problemas e estranhamentos que nós, leigos amantes do samba-enredo, sentimos mas não conseguimos explicar. 

Só na justificativa da Tijuca, ele escreveu que no trecho entre “Oh mãe” e “barril dobrado” a letra “apesar de belas imagens poéticas, se perde no desenvolvimento”. Mas se perde exatamente como? Aqui acredito que tenha faltado um pouco mais de explicação.

Porém em relação à dosimetria, pela primeira vez irei reclamar do Del-Penho. Ele não deu 4,8 em nenhum sub-quesito, porém acredito que em alguns momentos a diferença de problemas apontados foi substancial para o desconto do mesmo um décimo.

Em especial, na Mocidade, ele diz que o samba recorre a figuras rítmicas mais longas e a repetição desse padrão faz o samba soar mais alongado em 3 trechos diferentes. Porém, somando esses 3 trechos, isso preenche praticamente dois terços de todo o samba. Tendo justificado isso, não vejo como acertada a retirada de apenas um décimo, especialmente comparando com as justificativas de Vila e Salgueiro em letra.

Por fim, em suas considerações finais Alfredo escreveu algo que esta coluna pede há anos: a realização pela LIESA de encontros posteriores ao carnaval com os julgadores, primeiro com a LIESA e depois com os representantes das escolas em cada quesito. Essa é uma solicitação antiga de vários julgadores e em anos passados, o Eri Galvão também já tinha escrito o mesmo em suas considerações finais.

Del-Penho ainda ressaltou a importância da manutenção do encontro pré-carnaval que já existe (na verdade é o novo formato do “curso”, que já não é exatamente um curso, mas uma conversa).

Ele também sugeriu “alguma forma de premiar (com o bônus, por exemplo) a escola que mais se destacar no quesito. Muitas vezes a atual forma em que os décimos parecem subtraídos pode soar como punição aos erros em vez de premiação aos que são exuberantes.”. Lembro que esta ideia chegou a ser testada há muitos anos atrás com resultados não muito animadores. Talvez em Samba-Enredo a bonificação fique clara, mas há outros quesitos como Evolução e Harmonia nos quais a bonificação mais polemize do que premie.

Arrematando este caderno, está certo que o sarrafo histórico aqui é altíssimo, pois considero há algum tempo Del-Penho o melhor julgador do júri, mas terminei o caderno com a sensação que o caderno não teve a qualidade que nos acostumamos a ver neste julgador.

Módulo 2

Julgador: Alessandro Ventura

  • Império – 10
  • Grande Rio – 9,9 (melodia 4,9)
  • Mocidade – 9,9 (melodia 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,9 (melodia 4,9)
  • Salgueiro – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 10
  • Portela – 9,9 (letra 4,9)
  • Vila Isabel – 9,8 (letra 4,8)
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Viradouro – 10

Este foi o 2º ano de Alessandro no júri e aqui também houve um ligeiríssimo aumento na quantidade de notas 10, de cinco para seis. Quanto às justificativas, não há muita novidade, basicamente ele apontou algumas fragilidades que já vinham sendo comentadas dos sambas. Seja a platitude melódica da Mocidade, a falta de adequação de tamanho entre letra e melodia da Grande Rio ou a sopa de alusões sem conexão do meio para o final do samba da Portela.

Em relação às justificativas, apenas estranhei, especialmente levando em consideração a justificativa do próprio julgador para a Grande Rio, foi a nota 10 para o Império Serrano. Afinal a grande conversa do pré-carnaval, inclusive entre músicos, era que até para formar o acróstico a letra ficou grande demais para a melodia em alguns momentos, exatamente o que o julgador apontou para a Grande Rio. Mas, como sempre digo, sempre há a margem de subjetividade do julgador e pode ser que ele não tenha se incomodado com isso.

Por fim, quanto à dosimetria, pensando dentro do próprio julgamento feito pelo julgador, ela é coerente em todo o momento. A única crítica que faço, é a crítica geral a este quesito: será que apenas 2 décimos é a medida justa para diferenciar a qualidade dos sambas de Mangueira e Tuiuti em relação, por exemplo, a Salgueiro e Vila Isabel? Naturalmente isso resvala na falta de uma nota 9,7 sequer no quesito inteiro neste ano.

Módulo 3

Julgadora: Alice Serrano

  • Império – 10
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,9 (letra 4,9)
  • U. da Tijuca – 10
  • Salgueiro – 9,9 (letra 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 10
  • Portela – 9,9 (letra 4,9)
  • Vila Isabel – 9,9 (letra 4,9)
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Viradouro – 10

Alice possivelmente seja o melhor exemplo da minha teoria em relação ao aumento considerável de notas 10 neste ano e as fortes críticas recebidas pelos julgadores deste quesito no ano passado.

Desde sua estreia, ainda 2007, entre idas e vindas do juri, Alice já acumula doze carnavais de experiência. A exceção de seus dois primeiros anos, 2007 e 2008, quando concedeu oito e sete notas máximas respectivamente, Alice já julgou nove anos de desfiles, com qualidade de safras de samba-enredo variadas entre si, desde a safra complicada de 2009 até as ótimas safras de 2012 e 2014. Nesses nove carnavais, ela nunca deu mais do que seis notas 10 no mesmo ano.

De repente, justamente nesse ano, ela volta a sua estreia e concede oito notas máximas de novo, ou seja dois terços das escolas (ao menos em 2007 ainda eram 13 escolas). Detalhe: as míseras quatro notas abaixo de dez foram todas 9,9. Não teve sequer um mísero 9,8 no caderno de uma julgadora que colecionou vários 9,8 e 9,7 ao longo de sua história, inclusive nos anos mais atuais.

Pode ser uma mera coincidência e simplesmente, pela primeira vez na vida, Alice tenha acreditado que nenhum samba mereceu sequer um 9,8. Mas eu custo a acreditar que não haja nenhuma correlação entre este fato e críticas que o júri deste quesito recebeu ano passado.

Ao menos em relação aos parcos quatro décimos retirados, confirmando o histórico da julgadora de ser mais atenta à letra dos sambas, todos eles foram neste subquesito. O que desperta outra indagação: todas as escolas tiveram ótimas melodias e não mereceram nenhuma punição? Justamente neste ano em que, pelo menos, 3 melodias foram bastante contestadas no pré-carnaval (e receberam despontuações de outros julgadores)?

Noto também que é a primeira vez em doze carnavais que todas as melodias saem incólumes do julgamento dela.

Quanto às justificativas em si, 3 das 4 despontuam o que já foi bastante comentado no pré-carnaval e inclusive repisam temas já abordados nos dois cadernos acima. Já quanto à dosimetria, talvez possa-se argumentar que pela quantidade de problemas apresentados, Vila e Portela talvez pudessem perder um décimo a mais do que perderam, mas nada absurdo. Mais uma vez ficamos naquela zona em que cada olhar diferente pode chegar a uma conclusão diferente.

Entretanto, chama a atenção a justificativa da Mocidade, que perdeu o décimo por não mencionar explicitamente o nome de Mestre Vitalino em sua letra. A própria julgadora explica que o mesmo é citado de forma interpretativa quando é chamado de “deus do barro” na letra. Mas ainda segundo a julgadora, o nome de Vitalino está “na boca” de todos os moradores e artesãos o tempo todo e que era necessária uma citação clara ao nome dele para ficar marcado na memória de todos. É, inegavelmente, uma justificativa polêmica, afinal até que ponto o julgador pode interferir nas escolhas da escola de como abordar cada situação em sua letra de samba. Ao mesmo tempo, também devemos admitir que a julgadora tem um ponto de visão válido pela importância da pessoa para o enredo da escola e que está dentro dos critérios de julgamento do quesito.

De qualquer forma, por tudo que escrevi e considerando o ótimo histórico da julgadora, também acredito que tenha sido o pior caderno dela nesta coluna. Uma enxurrada de notas 10, dosimetria completamente achatada em um ano não muito bom no quesito e ainda uma justificativa polêmica. Assim como no módulo 1, não consegui reconhecer aqui os traços da ótima julgadora dos anos passados.

Módulo 4

Julgador: Felipe Trotta

  • Império – 9,9 (melodia 4,9)
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,9 (melodia 4,9)
  • U. da Tijuca – 10
  • Salgueiro – 9,9 (letra 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,9 (letra 4,9)
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 10 
  • Imperatriz – 9,9 (melodia 4,9)
  • Beija-Flor – 10
  • Viradouro – 9,9 (letra 4,9)

Se Trotta não igualou seu recorde de sete notas 10 de 2020, chegou próximo com seis. Porém, também me chamou a atenção aqui que, tal qual Alice, pela primeira vez em cinco julgamentos ele não concedeu sequer um 9,8. Foram seis notas 10 e outros seis 9,9. Especialmente nos casos de Império e Salgueiro, pela própria justificativa do julgador, acredito que havia espaço para a aplicação de 9,8 para ambas as escolas, especialmente para o Império onde problemas de melodia foram observados em praticamente toda a extensão do samba.

Por outro lado, Trotta manteve seu perfil mais teórico e não teve medo de descontar sambas consagrados no pré-carnaval mas que encontravam problemas dentro dos critérios de julgamento do quesito. 

Assim foi para a retirada de décimos de letra no Tuiuti, na qual ele sentiu que a estrutura de rimas a cada 2 versos se torna repetitiva, que esses pares de palavras (substantivos) movem as ações do samba reforçando a repetitividade e que isso também acarreta pobreza da letra na 1ª estrofe a partir do momento que todas as rimas são finalizadas com substantivos.

Também ele foi o único a despontuar o samba da Imperatriz em uma justificativa daquelas que elucidam o que sempre me incomodou neste samba mas não conseguia explicar musicalmente: “O início de quase todas as estrofes e refrões é praticamente igual: um arpejo ascendente do acorde (menor) de tônica. Isso ocorre em ‘Imperatriz veio contar…’, ‘Disse um cabra…’, ‘E foi-se então’, ‘nos confins do submundo’. Essa recorrência resulta em pouca variedade nas entradas das seções do samba, comprometendo sua riqueza melódica.”. Particularmente, esse samba me cansava à medida que o ouvia de forma mais repetida por todo pré-carnaval. Após ler essa justificativa consegui achar o motivo!

Este ano, após um “descanso” ano passado, Trotta voltou a descontar uma escola por excesso de rimas de mesma terminação, no caso o Salgueiro por excesso de rimas com verso no infinitivo. 

Já entrando na dosimetria, admito que é bastante complicado ver o julgador descontando, mesmo que corretamente pelo Manual, Imperatriz e Tuiuti ao mesmo tempo que dá nota 10 para os sambas complicados de Vila Isabel e Portela, com problemas mais graves apontados pelos outros julgadores. Aliás, foi o único 10 da Vila Isabel no quesito. Mais uma vez, mesmo que coerente em seus motivos particulares de desconto, Trotta tem uma escala de notas, a “arrumação das prateleiras”, de difícil compreensão.

Ao menos, esse ano ele está longe de estar sozinho. Para a minha mente, o julgamento inteiro de samba-enredo foi de difícil compreensão, especialmente se considerarmos o histórico dos próprios julgadores em carnavais anteriores.

Em suas considerações finais o julgador destacou o uso de rimas ricas, de vocabulário ampliado, aliterações e boas melodias nos refrães. Ele ainda deu a sugestão de reduzir o uso de algumas rimas recorrentes (como “-or” e “-ou”, “-ar” e “-er” em exemplos do próprio) e ampliar a variedade no planejamento de modulações nas melodias.

Finalizando o quesito como um todo, para mim, o mais triste não foi o julgamento em si, que considerei errático e que não destacou as escolas que se destacaram no quesito. O que realmente me entristece é perceber que, como seis escolas saíram com o 30 do quesito e outras três, mesmo com sambas contestáveis, saíram com 29,9, quase todos estão felizes com este julgamento e praticamente não se viu reclamação, ao contrário do julgamento do ano passado. Ou seja, no fundo a própria “bolha do carnaval” tem um comportamento que estimula os julgadores a darem 60% de notas 10 em um quesito e não dar notas baixas, mesmo quando elas sejam necessárias.

Recomendações para LIESA em Samba-Enredo:

  • Conversar com todos os julgadores deste quesito para tentar entender o que aconteceu no julgamento do quesito como um todo este ano, por que houve essa enxurrada atípica de notas 10 e por que o 9,7 não existiu. Afinal, este mesmo júri está junto desde praticamente 2019 e nunca tinha produzido algo neste nível.
  • Discutir com todos os interessados (julgadores, compositores e responsável pela direção musical das escolas) a situação do julgamento de melodias com tons mais baixos.
  • Tentar achar uma solução institucional para que os próprios compositores sejam chamados a discutir o julgamento do quesito com os julgadores, da mesma forma que os outros responsáveis pelos quesitos o fizeram neste ano.