O vídeo:
Sempre digo que Enredo é o quesito mais desafiador para se julgar, porque ele exige do julgador uma série de conhecimentos inatos sobre a tradição da festa, o fazer dos desfiles, uma carga cultural gigantesca e um olhar extremamente atento ala a ala, carro a carro com uma necessidade estudo profundo de um livro de 1.200 páginas. Se o julgador pouco compreende esses pontos, talvez não entenderá o que está passando na frente dele e achará tudo lindo, distribuindo várias notas 10, ou aplicando descontos de forma totalmente descabida.
Para alegria de todos e felicidade geral da nação, hoje temos um júri bastante competente que cumpre com afinco seu papel de julgar. Em minha opinião pessoal, hoje Enredo tem o melhor quarteto de julgadores da atualidade e isso se refletiu em um bom julgamento de um quesito que foi, corretamente, o mais raro em notas 10 no ano mais uma vez com apenas catorze notas 10. Afinal, por mais um ano consecutivo esse quesito foi açoitado, torturado, retorcido e triturado na pista da Sapucaí.
Módulo 1
Julgador: Johnny Soares
- Porto da Pedra – 9,7 (concepção 4,9 e realização 4,8)
- Beija-Flor – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Salgueiro – 9,9 (concepção 4,9)
- Grande Rio – 9,9 (concepção 4,9)
- U. da Tijuca – 9,7 (concepção 4,9 e realização 4,8)
- Imperatriz – 9,9 (concepção 4,9)
- Mocidade – 9,7 (concepção 4,9 e realização 4,8)
- Portela – 10
- Vila Isabel – 10
- Mangueira – 9,9 (realização 4,9)
- Tuiuti – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Viradouro – 10
Não tenho dúvidas em dizer que este caderno é a magnum opus de Johnny em sua longa carreira de julgador. Ele, que sempre entremeava justificativas muitos bem sacadas com outras que claramente desviavam dos critérios de julgamento e até dos limites do quesito, este ano fez um caderno sensacional. Os argumentos foram muito bem desenvolvidos e nenhum deles desviou dos critérios de julgamento.
Desconto por cronologia desnecessária para o argumento do enredo? Nenhum. Desvio dos limites dos critérios de julgamento? Nenhum. Perda de décimo por falta de beleza plástica? Também não passou perto do caderno deste ano. Aliás, quanto a este último ponto ele ainda ressaltou para a Beija-Flor que a última alegoria não passou a mensagem pretendida apesar das belíssimas soluções visuais.
De resto, ótimas e longas justificativas deixando claro os problemas vistos. Alguns fáceis e simples, como o erro de localização da ala do massacre do Haximu no Salgueiro que destoa totalmente do resto do setor sobre a cultura Yanomami e deveria estar no setor anterior sobre o garimpo ou a estranha coloração azul dada às folhas da Porto da Pedra na ala 19 que comprometia o entendimento de serem folhas. Outras um pouquinho mais elaboradas, como o desequilíbrio conceitual entre o início real e o meio/fim metafórico da Mocidade sem uma transição adequada.
Meu único porém a este ótimo caderno fica quanto ao desconto de concepção do Tuiuti, mesmo que a principal culpa seja da escola e não do Johnny. Segundo o julgador, “Retira-se 1 décimo pela inconsistência e incoerência da ala 7 (‘Cisne Branco’). Embora se aceite a existência de um hino da Marinha conhecido como ‘Cisne Branco’, não parece coerente – em um enredo que critica a escravidão, as desigualdades e violências sofridas por negros escravizados e de seus descendentes – a utilização de um signo como o ‘Cisne Branco’ que parece reforçar o racismo estrutural”
O ‘Cisne Branco’, enquanto símbolo relacionado à instituição militar ‘Marinha do Brasil’ (que no enredo é associada a práticas violentas no sec. XX) não parece ser a melhor escolha para ser aludida à transformação do homenageado. Ainda que João Cândido fosse marinheiro, neste enredo ele não poderia ser referenciado como um ‘Cisne Branco’, pois tal imagem mais confunde do que faz um contraponto à ideia de um ‘Netuno Negro’”.
A primeira vista parece uma justificativa muito apropriada. Mas, e se acrescentarmos que a ala representa o início da instrução de João Cândido na Marinha e a canção Cisne Branco foi composta por um oficial-aprendiz assim que saiu do barco de instrução da Marinha da época do João Cândido, o cruzador Benjamin Constant – e fala justamente da saudade que ele sentia da viagem de instrução e que com o sucesso da canção, o barco acabou ganhando o apelido de Cisne Branco?
Com toda essa explicação, a ala passa a fazer sentido e a justificativa perde força, concordam? O problema é que nem o próprio Tuiuti explicou isso no Livro Abre-Alas. Dessa forma, por mais pesquisa que o julgador faça, ele também não é enciclopédia. Se a escola não explica, fica difícil. Eu mesmo só conheço essa história por um capítulo muito específico da minha vida.
Módulo 2
Julgadora: Carolina Vieira Thomaz
- Porto da Pedra – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Beija-Flor – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Salgueiro – 9,9 (realização 4,9)
- Grande Rio – 9,7 (concepção 4,7)
- U. da Tijuca – 9,6 (concepção 4,7 e realização 4,9)
- Imperatriz – 9,9 (concepção 4,9)
- Mocidade – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Portela – 10
- Vila Isabel – 10
- Mangueira – 9,9 (realização 4,9)
- Tuiuti – 9,9 (realização 4,9)
- Viradouro – 9,9 (concepção 4,9)
Em seus dois anos anteriores, Carolina apresentou dois ótimos cadernos. Porém neste ano, ainda que tenha sido um bom caderno, senti oscilações nas justificativas apresentadas, por mais que o caderno tenha trazido uma distribuição de notas no mesmo nível de rigor anterior, refletindo de forma geral o que vimos na pista com apenas duas notas 10 após outro péssimo ano do quesito Enredo.
Como sempre, é notório que ela estudou e pesquisou os enredos, mas neste ano fiquei com a impressão que algumas justificativas tangenciavam o problema existente mas não lograram por explicar totalmente o cerne do mesmo, com redações que parecem refletir uma finalização abrupta, deixando lacunas de informação e compreensão.
Começando pelo mais evidente: para que entrar na seara, talvez desnecessária, de descontar a falta de explicação da fantasia das musas da Porto da Pedra e da Tijuca?
Houve alguma fantasia de musa que deixou sérias dúvidas quanto a adequação ao enredo, ou seja, fizeram falta? Afinal o Manual do julgador é claro ao dizer que eventual penalidade só deve ser dada pela falta ou inclusão de um elemento “se, para o julgador, resultar em prejuízo para o entendimento da narrativa” (grifos do próprio Manual do Julgador). Não ficou claro nas justificativas o prejuízo que ela percebeu ou pelo menos desconfiou das musas que estariam faltando explicação.
Já o problema da falta de explicação da ala 03 da Tijuca é mais grave e realmente pode ter resultado em danos à narrativa na visão da julgadora.
Outra justificativa que em anos anteriores eu acredito que estaria explicada melhor: na Tijuca quando ela escreve que “a predominância da abordagem fantástica por muitos setores afasta a boa percepção do país homenageado no enredo. Este é melhor identificado basicamente no setor 5”.
Por mais que seja inegável que tenha uma certa abordagem sobrenatural permeando boa parte do desfile da Tijuca, ele é mais forte apenas nos dois primeiros setores, o 3º setor é fortemente histórico, com a introdução das dominações romana e muçulmana. Muito mais histórico do que fantástico. Depois no 4º setor voltam algumas lendas marinhas, mas fortemente ligadas a história dos primórdios do estado-nação português.
Logo, o principal problema da apresentação de Portugal não é exatamente a abordagem fantástica, mas a falta de argumentação para trazer para o enredo em que parte a história contada em todos esses setores anteriores contribui para a formação física e afetiva do Estado e da nação portugueses.
Por exemplo, no 4º setor, a abordagem, apesar de fantástica, basicamente usou como fio condutor algumas lendas que ficaram eternizadas no folclore português através de relatos fantasiosos de marinheiros que participaram dessas expedições de expansão marítima portuguesas. Para quem as conhece, Portugal está escancarado.
O cerne da fragilidade da mensagem não é a abordagem fantástica, é não conseguir explicar ao receptor que lendas apresentadas ajudam a contar essa parte da história de Portugal, que acaba ficando apagada de tal forma que um “desavisado histórico” pode ficar sem entender.
Já na Beija-Flor a justificativa apresentada disse que a apresentação de aspectos sobre Maceió e Ras no 1º e 2º setores para depois retomá-los no 5º e 6º dificultou o entendimento da narrativa. Ou seja, ela caminha em direção a um grande problema da amarração do enredo da Beija-Flor que, compreendido, justifica a nota dada.
Mas, da forma como foi escrito acabou ficando incompleta, não descrevendo o principal problema: a falta de preparação na narrativa para a entrada do 4º setor, sobre a própria Beija-Flor, que entra na história no meio do desfile sem qualquer explicação; tipo um “deus ex machina” do teatro grego sem qualquer amarração prévia.
Depois dessa entrada da Beija-Flor, é que os setores 5 e 6 não conseguem demonstrar a “interferência” da entrada da Beija-Flor nessa mistura. O resultado disso foi um argumento cortado algo muito próximo a entrada abrupta de Caronte no Salgueiro em 2023 em meio a toda trama católica que então se desenvolvia, porém a justificativa acaba não descrevendo esse efeito.
Por outro lado, é difícil discordar das notas e justificativas da julgadora que mais geraram polêmica no pós-apuração: Grande Rio e Viradouro.
Ela foi a única julgadora que aplicou um desconto pesado pelo fato da Grande Rio ter falhado miseravelmente no âmago do quesito enredo: passar a mensagem, que no caso era que o mito tupinambá da onça poderia ser uma metáfora e síntese do que representaria ser um brasileiro. Como é uma falha grave e que perpassou toda a escola é perfeitamente entendível uma penalidade dobrada pela sua gravidade e extensão. Some-se a isso ao enxerto não explicado no desfile (somente no Livro Abre-Alas), de povos pré-colombianos da América Espanhola em um enredo que pretendia argumentar a brasilidade e chega-se ao 9,7 aplicado pela julgadora.
Quanto a Viradouro, a mesma retirou o décimo porque “não fica clara a relação dos voduns Loko (ala 20 ‘sem água’…), Mawu (ala 21 ‘magia’…) e os voduns da tempestade (ala 23 – ‘o poder’…) com o vodum Dangbé sobre o qual o enredo se desdobra.”
Nada a comentar, apenas acrescentaria que tal obscuridade ocorreu em virtude da não explicação de certos rituais dos terreiros de Bogum e de Seja Hundé, que foram todos condensados na ala 09 (Assentamentos) sem as devidas explicações. Sei que houve impeditivos religiosos nessa escolha da Viradouro para contar a história, mas o julgamento precisa ser laico e tal impedimento também não consta do Livro Abre-Alas.
Na parte de dosimetria, dentro do que ela escreveu no caderno, de modo geral há uma distribuição clara. Talvez, dentro da próprio critério usado pela julgadora no caderno, pode-se discutir se o ideal não seria retirar mais um décimo do Tuiuti pelo o que ela mesmo escreveu, já que ela apontou repetição do signo do timão em 5 alas e a falta fundamental da baioneta na ala 14. De qualquer forma é uma situação limítrofe, em que tanto o 9,9 como o 9,8 seria aceitável.
A situação a se pontuar com mais afinco aqui é o 9,8 da Mocidade. Não pelo que ela escreveu no caderno já que os dois problemas apontados; quais sejam, a hiper exploração da temática marinha no 3º setor e as leituras quase desapercebidas das alas 16, 17 e 18 e a difícil leitura da alegoria 4; realmente ensejam apenas a perda de dois décimos dentro da dosimetria da julgadora.
Mas, especialmente para um caderno rígido e detalhista, único a despontuar a Viradouro, único a ter coragem de descontar em três décimos a Grande Rio e o único a soltar um 9,6 neste ano no quesito, acredito que a nota da Mocidade, com seus inúmeros problemas tanto de concepção quanto de desenvolvimento em Enredo, ficou destoante na “arrumação das prateleiras”. Por mais que se entenda que o julgamento tem uma parte subjetiva intrínseca, acredito que esta nota da Mocidade tenha ficado fora da escala, principalmente se tivermos em vista os problemas pontuados para escolas como Grande Rio, Porto da Pedra, Beija-Flor e Tijuca.
Ao final, mais uma vez foi-nos apresentado um caderno que, no geral, deu notas condizentes com o apresentado na avenida, apesar de seus altos e baixos nos caminhos que levaram a elas.
Módulo 3
Julgador: Artur Nunes Gomes
- Porto da Pedra – 9,8 (realização 4,8)
- Beija-Flor – 9,9 (concepção 4,9)
- Salgueiro – 10
- Grande Rio – 9,9 (concepção 4,9)
- U. da Tijuca – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
- Imperatriz – 9,9 (concepção 4,9)
- Mocidade – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
- Portela – 10
- Vila Isabel – 10
- Mangueira – 9,9 (realização 4,9)
- Tuiuti – 9,9 (realização 4,9)
- Viradouro – 10
Mais um caderno de um julgador que claramente estudou o Livro Abre-Alas e também verificou o estudo teórico com o que passou na avenida. Porém, creio que este caderno seja um bom contraponto ao anterior pois jogou apenas na “zona de segurança” das justificativas óbvias e evidentes, tanto que em sua maioria também foram apontadas por outros julgadores.
Por exemplo, na Porto da Pedra foi-se um décimo pela dificuldade de leitura das alas 18 (uma folha de planta azul) e 25 (um pastoril apenas na cor vermelha sem o outro lado azul característico) e outro pela inversão da ala 10, que desfilou após a ala 12, o que também fora apontado pelos julgadores anteriores e comprometeu a compreensão do enredo. Mesmo que ao fim ele também tenha citado a falta de explicação das musas, fica claro que este fato não alterou a nota concedida.
Na Tijuca, um décimo foi por um erro de setorização ao colocar Orfeu (ainda retratado erroneamente como Orfeu da Conceição) no meio de dois elementos de lendas fenícias, outro pela dificuldade no entendimento da mensagem dos portugueses serem os próprios monstros da colonização na alegoria 03 e mais um décimo pela dificuldade de compreensão do último carro e da ala 03, amplificada pela falta desta última no Livro Abre-Alas.
Já na Imperatriz o décimo foi embora pela repetição dos signos astrológicos em nos dois últimos setores, prejudicando a coesão.
Na Mangueira, o décimo foi embora pelo mesmo motivo de todos os outros quatro julgadores: a falta de signos que permitisse o entendimento de algumas fantasias. Especialmente o excesso de carnavalização da ala 15 que, ao tingir de verde-e-rosa as baianas do da festa do Senhor do Bomfim, descaracterizam o branco de oxalá que elas vestem todos os anos. Esse problema foi apontado por todos os quatro julgadores e reforça uma mensagem importante já transmitida ano passado: cor também é signo, é mensagem e alguns casos o respeito a representação delas é fundamental.
Faço questão de ressaltar esse ponto pois ele será abordado ao final desta coluna para discutir um problema evidente da Vila Isabel que passou incólume por todos os julgadores.
Por fim, não posso deixar de concluir este caderno sem mencionar a nota 10 de difícil explicação dada ao Salgueiro. O Salgueiro teve um problema gritante de erro de setorização descrito no caderno do módulo 01, o último setor escolheu aleatoriamente outros povos indígenas de forma aparentemente aleatória para encerrar um desfile sobre os yanomamis, sem sequer uma mínima amarração. Pode-se até argumentar problemas de carnavalização na ala dos militares e falta de elementos yanomamis ainda na mesma ala do Massacre do Haximu.
É uma narrativa muito longe de estar “limpa” em um caderno que foi econômico em suas quatro notas 10 concedidas. Vendo as notas e justificativas do julgador para Mangueira e Imperatriz, tenho dificuldades em entender esta nota 10.
Porém, mais uma vez reitero que uma divergência em uma ou duas notas é natural do subjetivismo inato ao julgamento da LIESA e todos os julgadores também são seres humanos e não máquinas. Logo, isso não destrói o bom trabalho realizado neste caderno que, se não tem uma justificativa de destaque, também longe passa de qualquer polêmica.
Módulo 4
Julgador: Marcelo Figueira
- Porto da Pedra – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
- Beija-Flor – 9,9 (realização 4,9)
- Salgueiro – 10
- Grande Rio – 9,9 (concepção 4,9)
- U. da Tijuca – 9,7 (concepção 4,7)
- Imperatriz – 9,9 (concepção 4,9)
- Mocidade – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
- Portela – 10
- Vila Isabel – 10
- Mangueira – 9,9 (realização 4,9)
- Tuiuti – 10
- Viradouro – 10
O “Marcelinho Paz e Amor” ficou isolado no ano passado, afinal tivemos dois 9,7 e um 9,8, mesmo que acompanhadas das mesmas cinco notas 10.
Em grande parte, suas justificativas serpenteiam pelos mesmos motivos já comentados aqui nos outros cadernos, mas há algumas visões singulares.
Por exemplo, na Porto da Pedra, ele é o único que se incomoda com o setor do movimento armorial, pois segundo ele a escola não consegue demonstrar a ligação deste com o livro tema do enredo, pois o setor apenas fala do movimento sem demonstrar o argumento principal que este teve inspiração no Lunário Perpétuo.. Analisando o que passou na avenida, o julgador tem um argumento: a defesa feita no Livro Abre-Alas não se realizou completamente na avenida.
Aliás, também é interessante frisar que este foi o único julgador para o qual a inversão da ala 10 para depois da ala 12 não prejudicou a leitura do enredo. Particularmente concordo com os outros três julgadores e creio que atrapalhou o desencadeamento lógico; mas ao menos estava tudo dentro do setor sobre Manoel Caboclo e vejo como possível defender o ponto de vista do julgador.
Já para a Unidos da TIjuca, é interessante notar que o julgador não separou as diferentes situações de conceito encontradas e preferiu fazer um texto único englobando todos os problemas de falta de coesão e coerência de uma só vez para tirar os três décimos.
Não culpo o julgador. Em alguns momentos, especialmente quando a narrativa é confusa como um todo, é dificil conseguir compartimentar os problemas porque um começa a puxar o fio do outro e a se entrelaçarem até que fica algo parecido com bolo de poeira no chão, algo tão inseparável que só se consegue justificar tudo junto. Outro enredo na mesma “energia” é o Vira Bahia da Viradouro em 2009.
Mas, basicamente, ele reclama que o enredo alterna fatos mitológicos, lendários e históricos sem um elo que torne o discurso coerente, ficando impossível defender o argumento que os monstros do mar serviam de alertas para a exploração colonial, que Orfeu da Conceição é o narrador e o resultado dessa falta de conexão é uma incompreensão generalizada de todo o desfile.
Sejamos sinceros que, após essa explicação, é perfeitamente entendível a retirada dos três décimos de uma só vez, pois o problema da argumentação é gravíssimo e perpassa toda a escola.
Outra situação que em um primeiro momento pode causar estranheza é o fato dele ter retirado um décimo da Grande Rio por haver 3 setores que tiravam a coesão do enredo e tirar dois décimos de uma só vez da Mocidade por desconexão dos dois últimos setores.
Porém, creio que seja possível perceber que, na avaliação do julgador, a gravidade da situação da Grande Rio é razoavelmente menor, pois apesar do enredo ter sido alargado excessivamente, ainda estava com algum encaixe dentro do enredo. Já na Mocidade o problema, apesar de estar em apenas dois setores, seria bem mais grave, pois os setores estariam bastante desconexos com o propósito do enredo não conseguindo sequer demonstrar o que os dois últimos setores tem em conexão com o tema principal, o caju.
Na justificativa da Mocidade, Marcelo tem um lapso e apenas aponta a dificuldade de leitura das alas 12, 17, 19 e 23 sem explicar qual a dificuldade que ele sentiu, sendo que ele fez isso para todas as outras escolas, inclusive para as alas 3 e 4 da própria Mocidade. Também não é algo extremamente grave, já que foi notório que a Mocidade teve muitas escolhas de signos duvidosas por todo o desfile, mas fica o registro dessa incompletude no caderno.
Quanto à dosimetria, vejo dois problemas localizados. O principal deles é o mesmo do caderno anterior, a nota 10 do Salgueiro e a comparação é a mesmíssima com o 9,9 da Mangueira, por exemplo. Outra situação que seria interessante o julgador prestar atenção no futuro é uma maior consideração quanto a dosimetria dos problemas de leitura de alas. Por exemplo: ele viu 3 problemas na Porto, 6 na Mocidade e 5 na Mangueira, um deles em alegoria, e em todos eles foi retirado apenas um décimo em realização.
Sabemos que a gravidade dos problemas também importam e não apenas a quantidade, mas o ponto de corte para a retirada do segundo décimo não fica claro, seja pela falta de detalhamento dos problemas da Mocidade para conseguirmos analisar a gravidade dos problemas, seja porque acabou não havendo a retirada desse 2º décimo por falta de leitura para nenhuma escola.
Dentro da característica desse julgador de tentar ter uma visão do todo do argumento para dar a nota, sem se ligar a filigranas muito específicas no caso de um enredo bem contado, entendo a nota 10 dada para o Tuiuti, a única do quesito.
Porém esses ligeiros deslizes também não tiram a qualidade deste caderno de julgamento.
Finalizando o quesito como um todo, visando a melhoria do julgamento para o próximo ano, quero tecer algumas considerações para os quatro julgadores, já que todos deram nota 10 para a Vila Isabel, que dessa forma foi uma das duas únicas escolas a sair do quesito com 40, a outra foi a Portela.
Desde o ano passado, após o correto desconto para a mesma Vila Isabel pelo erro na representação da cor das baianas de Senhor do Bonfim, ficou claro que cor também é signo, é mensagem e um erro na cor que passe uma mensagem errada é passível de desconto por problema de desenvolvimento. Isso também foi muito bem visto pelos quatro julgadores na ala 15 da Mangueira neste ano.
Porém é preciso que se perceba que estilo artístico também é signo, também é mensagem. Nesse sentido, considerando a enorme incongruência do estilo artístico escolhido pela Vila Isabel para contar a história de Gbalá, houve um claríssimo problema na mensagem passada que torna muito difícil entender essa chuva de notas 10.
Por mais que saibamos que a história de Gbalá é totalmente inventada da cabeça do Oswaldo Jardim e letrada pelo Martinho da Vila, é inegável que a história é baseada em saberes ancestrais ligados ao candomblé yorubano. Por mais que se tenha tentado passar uma visão universal no texto do Abre-Alas, esse universalismo tem limites e jamais poderia ser desenvolvido artisticamente com traços do renascentismo e romantismo europeus que pouco ou nada tem a ver com as inspirações da história inventada. Afinal, o próprio Livro Abre-Alas diz que “Trata-se de uma narrativa ficcional, com base na cultura yorubá”.
O ponto mais gritante dessa incongruência é o carro 2 da Vila Isabel. Ali, por mais universal que seja a história, não dá para escapar que as crianças estão entrando no templo da criação de Oxalá. Não há universalismo que nos consiga transportar para a estética escolhida para o carro, cheio de fadas brancas e traços europeus que pareciam vindos diretamente das ilustrações de uma fábula de Hans Cristian Andersen. Aquele carro falhou em todos os sentidos em representar o templo da criação de Oxalá, de uma forma que não dá para “passar por cima”.
Esse estilo artístico europeu acaba perpassando quase todo o desfile e volta a ficar gritante no carro da Criação do Homem, de claríssima inspiração renascentista e que ainda tinha também problemas de leitura de signo ao focar apenas na parte muscular do homem para ilustrar a criação, desprezando tudo aquilo que as próprias alas anteriores falavam.
Em um ótimo julgamento de enredo, em que tivemos apenas catorze notas 10 por conta da má qualidade do quesito como um todo na avenida neste ano, é difícil defender que quatro dessas notas tenham ido para um desfile tão dissonante quanto o da Vila em relação aos traços artísticos e a mensagem que se pretendia passar. Fica a sugestão para que no próximo ano os julgadores de enredo fiquem mais atentos à congruência da proposta do estilo artístico do desfile com a mensagem que o enredo quer passar.
Recomendações para a LIESA em relação ao quesito Enredo:
- Clarificar com mais detalhes os limites da avaliação de criatividade no quesito Enredo, deixando claro que a avaliação deve se concentrar apenas na forma de comunicar o enredo, não na questão artística das fantasias e alegorias.
- Explicitar claramente no Manual do Julgador que a falta de cronologia não deve ser despontuada se isso não afetar a mensagem do enredo que a escola está contando.
- Reforçar a atenção do julgador quanto a congruência das referências artísticas do desfile com o enredo proposto.
Imagens: Pedro Migão (Blog Ouro de Tolo)