O vídeo:

Em 2022, defendi que os problemas ocorridos no julgamento de Samba-Enredo seriam excepcionais, pois os mesmos julgadores fizeram bons julgamentos nos anos anteriores. Mas depois de 2023 e 2024 os rumos deste quesito me deixam apreensivos quanto ao futuro.

Módulo 1

Julgador: Alfredo Del-Penho

  • Porto da Pedra – 9,9 (melodia 4,9)
  • Beija-Flor – 9,9 (letra 4,9)
  • Salgueiro – 10
  • Grande Rio – 10
  • U. da Tijuca – 9,8 (melodia 4,8)
  • Imperatriz – 10
  • Mocidade – 10
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 10
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 10
  • Viradouro – 10

Nove notas 10 em doze possíveis, 75%. É a maior quantidade de notas 10 em todo julgamento excetuando-se Bateria. É uma opinião majoritária que a safra de sambas de 2024 é totalmente esquecível a curto prazo, mas será que nove sambas merecem estar no mesmo patamar da nota máxima? Não há nenhuma diferenciação possível entre os sambas da Grande Rio e do Tuiuti com Portela e Imperatriz, apenas para ficar nos exemplos mais gritantes?

Sei que há o contra-argumento do “mas em um julgamento punitivista não temos como descontar algo que muitas vezes não gostamos”. Em alguns momentos eu mesmo lanço mão deste argumento, como em 2023 nas Comissões de Frente de Salgueiro e Beija-Flor.

Mas lá em Comissão de Frente temos um Manual do Julgador arcaico que não atualizou os critérios de julgamento aos novos rumos do quesito e abre espaço para isso. Em Samba-Enredo, acredito que isso não ocorra. Basta um pouco de coragem dos julgadores em aplicarem os critérios existentes.

Darei um exemplo que vale não só para o Del Penho, mas para todos os julgadores, afinal trata-se de um samba nota 40: Salgueiro. Logo o primeiro critério de julgamento de letra diz para considerar “A adequação da letra ao enredo”. Agora vejam este trecho do samba Você quer me ouvir cantar em Yanomami / Pra postar no seu perfil / Entre aspas e negrito, o meu choro, o meu grito / Nem a pau, Brasil”. É um protesto, é uma reclamação, uma negação a um pedido. 

Agora, vejam no Livro Abre-Alas ou no próprio desfile o desenvolvimento desse setor “Pra postar no seu Perfil”. Com a exceção da ala do Massacre do Haximu, já discutida em Enredo, é um setor de exaltação à cultura Yanomami, de tom positivo, de mostrar o que os Yanomamis tem a contribuir.

A letra do samba está adequada ao enredo? Creio que uma está para um lado e outra para lado diametralmente oposto, logo a letra não está adequada ao enredo, mesmo tentando usar um viés interpretativo para entendê-lo. No entanto, foi um dos únicos sambas com todas as notas 10 do ano, o outro foi o da Viradouro.

A não observância deste critério de julgamento tem sido uma constante do julgamento de samba-enredo. O maior exemplo disto foi o samba da Unidos da Tijuca de 2020, onde o descasamento entre letra e enredo era total, do primeiro ao último verso, Não obstante o único a despontar isso, e em apenas 0,1, foi o próprio Del Penho.

Quanto às parcas três justificativas, nada a contestar ou acrescentar. Figuras rítmicas que dificultam o canto na Porto da Pedra, as frases da letra interrompidas pela melodia na Beija-Flor (tal qual o samba-carta da Viradouro em 2020) e a melodia pouco inspirada da Unidos da Tijuca. Justificativas curtas, diretas e evidentes. Porém sem aquele didatismo que o marcava até 2022. Aliás, começa-se a se desenhar um Del Penho “pré polêmica da Vila 2022” e outro “pós polêmica de 2022”.

Não acredito que seja coincidência o fato dele ter batido pelo segundo ano consecutivo seu próprio recorde de notas 10 esse ano em mais um caderno complicado.

Por fim, em suas considerações finais, Del Penho sugere algo que há algum tempo é solicitado por vários julgadores e é uma das principais reivindicações desta coluna há anos: que os julgadores, ao fim do último desfile, possam ser levados imediatamente ao hotel onde ficam hospedados, para que, no centro de convenções do hotel, possam, em um ambiente adequado, refletir sobre a notas e fazer o caderno nas melhores condições possíveis. 

Vou além e dizer que esse tempo extra é bom até para digerir o desfile da última escola e ter mais calma para avaliar este em comparação ao das outras. Sem contar o fato de na Sapucaí os camarotes produzirem 100 decibéis após o final dos desfiles, o sol maltratar as cabines de julgamento do lado par e as cabines metálicas do ímpar tremerem ao som grave dos camarotes.

Módulo 2

Julgador: Cyro Delvizio

  • Porto da Pedra – 10 
  • Beija-Flor – 9,8 (melodia 4,8)
  • Salgueiro – 10 
  • Grande Rio – 9,9 (letra 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,7 (letra 4,8 e melodia 4,9)
  • Imperatriz – 9,9 (melodia 4,9)
  • Mocidade – 9,8 (melodia 4,8)
  • Portela – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9) 
  • Vila Isabel – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 10
  • Viradouro – 10

Muitos reclamavam que o Felipe Trotta nunca seguia o “senso comum” dos fãs de Carnaval nas suas notas e eu sempre argumentava que, se realmente a visão dele era bastante diferente da média, ao menos ele tinha uma coerência muito forte no seu padrão de julgamento.

Seu substituto em sua estreia manteve o desvio absoluto do “senso comum”, mas resolveu acrescentar justificativas bastante polêmicas. Uma delas beira o indefensável.

Quanto ao senso comum, ele descontou 3 dos 4 sambas mais bem comentados deste carnaval: Imperatriz, Mocidade e Portela. O 4º é justamente o do Salgueiro, com um motivo evidente de desconto, como explicado no módulo 1.

Ao mesmo tempo, dois sambas menos aclamados receberam 10: Mangueira e Tuiuti.

Não quero dizer que ele está certo ou errado em descontar sambas aclamados ou o contrário, apenas quero reforçar um argumento meu que muitas vezes a troca de julgador não surte o efeito desejado.

Porém, diferente de Trotta, muitas de suas justificativas são contestáveis. Começando pela que acredito ser a mais absurda, que foi para a Unidos da Tijuca em letra: “Verso 2 possui pouca conexão entre assuntos (Odisseu e Lisboa) embora justificados no Abre-Alas e no desfile”.

Para começar, se o próprio julgador admite que a situação está justificada tanto no Abre-Alas como no desfile, ele tem que ser ainda mais incisivo em sua explicação do desconto. Ele tem que explicar o porquê, na visão dele, a escola conscientemente está trazendo algo errado. Ele não faz.

Pior, como defender que Odisseu e Lisboa não tem conexão? A escola traz em seu enredo uma lenda em que Odisseu é peça chave na fundação da cidade de Lisboa. No mínimo ele teria que atacar fortemente esta lenda, algo do tipo “a lenda está contada errada”, para afirmar a falta de conexão e retirar o décimo. Essa é uma daquelas justificativas que se existisse a possibilidade de recurso a chance da escola obter esse décimo de volta era bem alta.

Já na Beija-Flor: “Melodia -0,1: excessos de motivos melódicos nos dois versos prejudicam unidade melódica”. Nem discutirei a justificativa em si, mas quais são os tais dois versos? Simplesmente não foram citados. O julgador até cita alguns versos no décimo anterior retirado, mas ele cita 4 versos distantes entre si.

A situação ainda piora na Imperatriz, na qual, excetuando-se a retirada da palavra “dois”, a justificativa é igual. Em que versos há excesso de motivos melódicos? Também não sabemos.

Ele ainda usa esse mesmo “excesso de motivos melódicos” para descontar Tijuca, mas ao menos ele indica que são nos versos 2 e 4, mesmo que a repetição a esmo dessa mesma justificativa acabe dando a impressão de décimo retirado a bel prazer.

Ainda na Tijuca, o outro décimo de letra vai embora porque o Orfeu Negro “ao olhar para trás” ao invés de cantar sobre sua negritude, prefere cantar sobre Grécia e Portugal. A crítica realmente é válida, mas em Enredo, não Samba-Enredo. Nesse caso o samba apenas faz o que tem que fazer e segue o que o enredo que escola se propõe a apresentar. Críticas em relação a esse recorte pertencem ao critério de julgamento de Enredo, não de Samba-Enredo.

Mas os problemas não param por aí. Na Grande Rio o décimo vai embora porque a letra não daria conta de expressar com clareza as reivindicações da pauta indígena expressas na justificativa do samba-enredo e brevemente apresentadas no desfile. Só que, lendo o Livro Abre-Alas, a justificativa do samba-enredo não fala em reivindicações indígenas a não ser por uma brevíssima passagem secundária no fim da 2ª estrofe. Até porque o tema central do enredo não era esse e o próprio Manual do Julgador diz que “a letra poderá ser descritiva ou interpretativa, sendo que a letra é interpretativa a partir do momento que contar o Enredo, sem se fixar em detalhes.” (grifos nossos).

Vila Isabel: “letra -0,1: menor quantidade de rimas na terceira estrofe cria estrutura poética desigual”. Quero nem pensar na nota deste julgador para Raízes (VIla Isabel 1987).

Portela: “Melodia -0,1: refrão final não tem a força melódica esperada, mesmo com modulação para tom maior”. É verdade que o refrão do meio da Portela é o grande momento do samba, mas isso não é nenhum defeito. O refrão principal também se destaca do resto do samba. No mínimo é uma opinião bastante polêmica.

Por fim, nem vou comentar as justificativas de Mocidade (notas longas e descaracterização do samba pelo frevo) porque, apesar de polêmicas, creio que sejam aceitáveis dentro da opinião permitida dos julgadores que sempre está embutida no julgamento do Rio de Janeiro.

Porém é um caderno bastante complicado em vários momentos. Quando os momentos complicados se sucedem em demasia no mesmo caderno, até pontos que normalmente seriam aceitos passamos a discutir.

Módulo 3

Julgadora: Alessandro Ventura

  • Porto da Pedra – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9
  • Beija-Flor – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Salgueiro – 10
  • Grande Rio – 9,9 (melodia 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,7 (letra 4,8 e melodia 4,9)
  • Imperatriz – 10
  • Mocidade – 9,9 (melodia 4,9)
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 10
  • Mangueira – 9,9 (melodia 4,9)
  • Tuiuti – 9,9 (letra 4,9)
  • Viradouro – 10

Se tem um julgamento que exprimiu o tal “senso comum” do mundo do samba foi esse. Seja nas notas ou nas justificativas, mais uma vez Alessandro escreveu com clareza problemas que já eram apontados no pré-carnaval e mostrou suas consequências na avenida.

Como sempre em samba-enredo, haverá alguns pontos polêmicos como o desconto pelo excesso de rimas de mesma terminação na Porto da Pedra e na Tijuca ou a “relação conflitosa entre rimas e melodia” em determinados trechos da Mocidade. Porém em todos eles o julgador vai além de meramente “jogar” o motivo e explica o prejuízo que isso causou para o desfile em sua visão. Pode-se concordar ou discordar do julgador, mas ele cumpriu sua missão de julgar dentro dos critérios existentes no Manual e de acordo com a sua opinião dentro dos limites possíveis.

O único ponto a se discutir em relação às justificativas é na Unidos da Tijuca quando ele retira um décimo por um motivo que flerta bastante com o espaço de julgamento quesito Enredo: “A mobilização de imagens como a da escravidão ou mesmo o gesto que busca estreitar as diversas reações com o sagrado (macumbado de amém e axé) produziu uma cesura nas linhas condutoras do enredo ao trazer para o 1º plano exemplos da tragédia humana que foi a colonização. Quando arroladas junto com mitos e lendas da história lusa, os episódios de sofrimento conectam mal os polos do espectro temático e passam a ter funcionalidade desfavorável ao requisito de coerência e consistência do enredo”. 

Na prática ele está reclamando que a letra mistura traços dos povos escravizados com os colonizadores de uma forma desfavorável, eu diria até insensível. Porém, avalio que isso também seria uma questão para o quesito Enredo e não para o samba-enredo, que apenas exprime o que o Enredo pretende mostrar. Tanto é que o julgador termina a justificativa invocando a falta de consistência e coerência do enredo, e não do samba-enredo em relação ao enredo.

De resto, justificativas claras, bem explicadas e com dosimetria de fácil entendimento.

Termino o caderno com uma justificativa bastante didática dada para a Grande Rio: “Palavras de difícil dicção em quantidade expressiva em uma composição musical não raro pressagiam problemas de prosódia, ao mesmo tempo que exponencia o grau de restrição da comunidade à compreensão da obra. Passagens presentes por quase toda extensão da peça musical acabaram por confirmar aquele prognóstico na medida que tais palavras afetaram a fluidez do fraseado melódico assim como geraram embaraços que dificultaram a entoação do canto em várias partes da obra. As evidências de imperícia técnica dão fundamento a subtração de 0,1 em melodia.”

Módulo 4

Julgador: Alice Serrano

  • Porto da Pedra – 10
  • Beija-Flor – 9,9 (letra 4,9)
  • Salgueiro – 10
  • Grande Rio – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,8 (melodia 4,8)
  • Imperatriz – 10
  • Mocidade – 10
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 9,8 (letra 4,9 e melodia 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,9 (melodia 4,9)
  • Viradouro – 10

Alice tradicionalmente tem um cuidado maior com letra, mas neste ano dos seus (poucos) descontos, a maioria foi em melodia.

A maior parte dos descontos pisa em situações já passadas aqui, como a letra quebrada da Beija-Flor na parte do “gira peão”, a qual a julgadora acrescenta que não conseguiu passar a relação do peão com o apelido Gonguilla; a letra da Grande Rio e os inúmeros problemas do samba da Tijuca.

A única justificativa que me saltou aos olhos foi a de melodia da Grande Rio. A julgadora alegou que a entrada do verso “kio, kio, kio, kiera” fugiu do tema musical desenvolvido até então. Realmente ele foge, mas justamente porque cumpre uma função de ajudar a traduzir o enredo. trazendo a melodia de um ponto de umbanda lindo e bastante conhecido que tem esse verso como letra. Se a julgadora descontasse a letra porque a citação não se coaduna com o enredo, até seria um ponto de interessante discussão. Mas descontar em melodia por fuga de tema musical é contestável, até porque a escola demonstrou ser proposital e explicou o motivo.

Na Vila Isabel ela até também cita a falta de rimas na 3ª estrofe para descontar Gbalá, mas dentro de vários outros argumentos: “em riqueza poética, considerando o Manual do Julgador (pg. 42) e o princípio comparativo de análise dos sambas de enredo como critério de julgamento. Apesar da letra do samba ser tocante no seu especto mais profundo, que é a mensagem, o seu conceito e razão de existir, pode ser observado pouco uso de rimas, figuras de linguagem e um universo vocabular de repetições das palavras esperança, geração, salvar, criança, criador, criação, criado.”

Mesmo que se discuta a situação das rimas, é inegável que Gbalá repete “criação” e “criador” quatro vezes só na primeira parte do curto samba e no meio dessas repetições “geração” ainda se repete duas vezes. Dentro do critério da julgadora, que está incluído nos critérios de julgamento do Manual, é difícil discordar. 

Recomendações para LIESA em Samba-Enredo:

  • Discutir em um seminário de forma aberta os rumos do quesito como um todo.
  • Discutir com todos os interessados (julgadores, compositores e responsável pela direção musical das escolas) a situação do julgamento de melodias com tons mais baixos.
  • Tentar achar uma solução institucional para que os próprios compositores sejam chamados a discutir o julgamento do quesito com os julgadores, da mesma forma que os outros responsáveis pelos quesitos desde 2022.

Imagem/Vídeos: Blog Ouro de Tolo