Quanto à foto, é apenas para lembrar aos leitores de um caso emblemático desta questão. Confesso que minha opinião é um meio termo entre a posição defendida pelos que acusaram a torcida mineira de homofobia e aqueles que não consideraram o episódio agressivo. Mas voltarei em post futuro ao tema, antes que me interpretem mal.
Liberdade, Ainda que Tardia
Faça um teste: digite no Google a expressão “conflito direitos fundamentais” e compare com, por exemplo “Grazi Massafera gostosa” (ou, para a ala feminina do Ouro de Tolo, “Cauã Reymond lindo”).
Ligando alhos com bugalhos, essa expressãozinha enigmática invariavelmente significa um link para algum artigo ou decisão judicial onde o direito à liberdade de expressão foi temperado e, com o perdão do juridiquês, “mitigado” por outro direito fundamental (que são aqueles previstos pela Constituição).
Nossa Constituição, todos sabemos, é extensa e prevê disposições sobre quase tudo. E dentro dela há um artigo muito especial, o art. 5º, que lista os direitos e garantias fundamentais. É quase uma constituição por si mesmo, porque tem 78 incisos (enumerados em algarismos romanos, para punir os mais desatentos) e muitos deles com alguns parágrafos. Não fiz a conta, mas, por alto, tem ali uns 100 dispositivos legais. Todos eles elevados à nobreza maior do ordenamento jurídico, ou seja, não estão sujeitos à mudança nem por emenda constitucional – formam uma categoria muito peculiar que os juristas chamam de cláusulas pétreas.
A Constituição de 1988, feita no calor do processo de redemocratização, é o símbolo máximo do fenômeno que outro dia comentei aqui, o desejo de modificar o mundo na base da caneta. É o manual de boas intenções mais extenso que conheço. Pena que a vida real não seja assim tão repleta de boa vontade. Quando todo mundo passa a pesquisar a Constituição para encontrar uma tábua de salvação para o seu problema particular – e, convenhamos, com uma centena de dispositivos fica difícil não encontrar uma saída – os tais direitos fundamentais entram em conflito, cabendo ao Judiciário a palavra final.
Vamos aos exemplos: o art. 5º, IV, afirma que “ é livre a manifestação do pensamento”. O inciso IX insiste que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Parece óbvio que aqui no Brasil qualquer um pode dizer a asneira que lhe der na telha ou publicar um tratado lotado de sandices que a Constituição está aí para isso mesmo, para garantir o nosso velho direito de dizer bobagens.
O problema é que logo a seguir vem o inciso X, sacramentando que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Mas como agir no caso em que a minha livre manifestação do pensamento possa de algum modo atingir a imagem de uma pessoa? Será que um direito vale mais do que o outro?
É claro que um não pode valer mais do que o outro e na teoria ambos precisariam ser “harmonizados”, para usar uma expressão da moda. O problema é que o meu direito de falar mal do Beltrano é rigorosamente igual ao direito do Beltrano de proteger a sua imagem evitando que eu fale mal dele. Isso não pode ser harmonizado, conciliado, compatibilizado, enfim, aplicado. Ou quem tem o direito sou eu ou é o Beltrano.
Como brasileiro tem dificuldades crônicas em tomar decisões que desagradem a uma parte, cometemos o grande pecado de ter colocado ambos os princípios lado a lado e na mesma esfera de valores, o que só nos deixa a pior alternativa de todas, qual seja, quem vai decidir entre mim e o Beltrano é um terceiro que não nos conhece, um juiz [N.doE.: que provavelmente decidirá a favor da parte mais poderosa ou mais endinheirada].
Se este juiz – em geral, um juiz de primeira instância, ainda nos primeiros anos da carreira – for um entusiasta da liberdade de expressão, é provável que ele me deixe à vontade para falar mal do Beltrano. Mas se eu der o azar do sujeito ser mais inclinado a proteger a intimidade do Beltrano, eu que me recolha ao silêncio.
É assim que vivemos desde 1988. Às vezes o Roberto Carlos ou as filhas do Garrincha conseguem impedir a publicação das biografias que lhes desagradam. Às vezes o marido da Athina Onassis não consegue impedir que uma revista de fofocas explore o drama da sua ex-mulher que se suicidou.
Um retrocesso, infelizmente. Madura é a sociedade que não se escandaliza quando um deputado vem a público insinuar que homossexualismo é questão de má educação. Liberdade de expressão, em síntese, não é nada além do que o direito de dizer qualquer coisa, inclusive atrocidades como a desse bucéfalo.