Aydano André Motta, jornalista, niteroiense, especializado em futebol e samba. Rubro negro, torcedor da Beija-Flor de Nilópolis e um dos colaboradores do portal “Ancelmo.com”, hospedado no jornal O Globo, onde fica, também, o seu blog, “Chope do Aydano”.
Convivência em listas de e-mail sobre as escolas de samba cariocas e no Twitter – onde concordamos no ceticismo sobre as administrações rubro negras – trouxeram a proximidade bem própria deste meio virtual. Aydano André Motta é o entrevistado de hoje da coluna “Jogo Misto.
1 – Como você avaliaria o modelo de gestão dos clubes de futebol brasileiros e, em especial, do Flamengo?
AAM – Uma tragédia a serviço de um punhado de desclassificados. A cartolagem brasileira permite generalizar. Há uma naturalização da falta de ética, com barbaridades como o financiamento a torcidas organizadas, por exemplo. O Flamengo é tragicamente igual ao resto do futebol brasileiro – à exceção, talvez de Inter e Grêmio (motivados pela rivalidade doméstica) e, em alguns poucos momentos, o São Paulo. Para mim, é como a música do Chico: não tem conserto nem nunca terá.
O Flamengo não tem opção decente de dirigente num futuro razoável. Poderia aqui citar uma centena de exemplos da incompetência que deixará a torcida refém dessa gente pelos anos afora. Basta um: quem o clube (não) revelou nos últimos anos. Ou outro: o dócil acolhimento a desajustados de todo o tipo, atraídos pela leniência endêmica com todo tipo de transgressão. Não tenho esperança, infelizmente.
2 – Cada vez mais vemos uma crescente de demanda de notícias em tempo real dos aficcionados por futebol. Como atender a esta crescente demanda aliando ao mesmo tempo rapidez, credibilidade e acurácia ?
AAM – Você nota a demanda pelo tempo real no futebol porque é um assunto que lhe (nos) apaixona. Ela existe em todos os temas. Para mim, jornalismo é, antes de tudo, cautela. Prefiro dar a notícia depois, para dá-la checada, obediente a preceitos éticos inegociáveis. Permito-me um orgulho bizarro: não publico muito mais do que publico. Porque checo, pergunto de novo, penso, analiso, pondero. E cultivo a vaidade de ouvir meus entrevistados dizerem-se impressionados com a fidelidade às suas declarações nas minhas matérias. E, veja, rigorosamente todo mundo é merecedor de tal cuidado. Do herói nacional ao marginal mais abjeto. O tempo real deve obedecer ao mesmo protocolo.
3 – Quais suas expectativas para a organização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016? Que legado poderemos esperar da realização dos dois eventos?
AAM – Os eventos serão um sucesso, vai dar tudo certo na sua realização porque um e outro são estruturas privadas, autônomas, delirantemente milionárias. O legado será pouco, mas haverá algum. A roubalheira será brasileiramente muita. Normal – o comando do esporte mundial difere dos traficantes enxotados do Alemão apenas no corte da roupa e no preço do perfume.
4 – Como você avaliaria a gestão das nossas escolas de samba ? E de que forma esta forma de gerência pode ser aprimorada ?
AAM – Um conjunto de instituições quebradas, que recusam qualquer arremedo de transparência nas contas, e, ano sim, ano também, mendigam patrocínios os mais humilhantes. Gestão, aonde? Olha, falar do prontuário dos manda-chuvas do samba é aborrecido, por velho. E atribuir a incompetência ao fato de serem contraventores é raso. A relação dos bicheiros com o samba é longeva, porque a festa sempre foi marginal – e é, ainda hoje, quando os ricos (a classe média no Brasil é uma inovação do governo Lula; antes, eram ricos e pobres) só prestam atenção quando começa a transmissão da Globo. Alguém tinha de cuidar e, à falta de outros candidatos, eles pegaram. E fizeram um ótimo trabalho. Poucos se lembram hoje, mas no tempo da prefeitura o desfile acabava ao meio-dia.
Ao longo de décadas, as relações entre sambistas e patronos se legitimaram, a um ponto que se torna quase impossível mudar. Mas a gestão das escolas é, sobretudo, estreita. Falta estudo para gerir um evento planetário. O carnaval carioca poderia muito mais, se topasse se abrir à vera ao profissionalismo. Mas é um cartório, e, como tal, tem alergia a luz. Meu ponto, insisto, não é esse. Funcionaria, se houvesse mais preparo para dar a essa festa e a esses artistas a dimensão que eles merecem.
Veja a Cidade do Samba. Encravada na Zona Portuária, ampla, nova, deveria ser a Disneylândia carioca, e é quase um cemitério, que funciona, mal e mal, cinco meses por ano. Não tem lugar pra comer, mal tem banheiro! Todos os meus amigos estrangeiros ao mundo do samba que visitam, ficam chocados com o potencial inexplorado.
Um caso: em 2009, estive na gravação do coro do CD dos sambas-enredo, e perguntei quando seria gravado o DVD. Ouvi, perplexo, que a Liga não tinha dinheiro para produzir um DVD. Expliquei, desconsolado, que as escolas de samba cariocas RECEBERIAM por PERMITIR a gravação. Mais um carnaval chegou, e tem DVD? Claro. Nas escolas de São Paulo, o túmulo do samba – há vários anos. Diante disso, falar em gerência é quase piada, né não?
5 – Por que, com raras exceções, não existe democracia em nossas agremiações carnavalescas ?
AAM – Porque não existe cidadania, a educação é pouca e os arremedos de democracia também dão errado – está aí o calvário do Império Serrano como prova. Quem vai reivindicar democracia nas escolas de samba? A ditadura vigora porque é mais fácil. Simples assim. As eleições são teatros protocolares, para perpetuar presidentes que só saem quando enjoam da brincadeira.
6 – A Beija Flor claramente é utilizada pela Família David para um projeto mais amplo de poder no município de Nilópolis. De que forma o papel exercido pela escola poderia suplantar os “82 minutos de desfile” e o seu posicionamento na estrutura do município da Baixada Fluminense ? Em sua opinião a escola teria vida própria sem o apoio da família dirigente ?
AAM – A história da Beija-Flor é mais sofisticada do que enxerga o olhar estrangeiro, que imagina uma comunidade sequestrada por uma família. Os Abrahão David estão lá desde sempre e há, sim, uma relação com o poder político em Nilópoils. Mas a história tem outras nuances. O patrono da escola – o personagem determinante é Anísio, o resto da famíia é acessório – tem devoção pela comunidade, não apenas se aproveita dela. Ele protege e ajuda, de um jeito questionável, com assistencialismo, mas ali há mais do que simples dominação. É uma via de mão dupla.
Os espetaculares ensaios da escola, às segundas e quintas na quadra, são a maior prova disso. Nilópolis se entrega ao carnaval de um jeito único, mérito do povo de lá, que sustenta amor inegociável pela Beija-Flor. Ninguém, no carnaval contemporâneo, canta e se empenha como eles. É o fato mais empolgante da nossa festa, hoje em dia – e vai muito além da influência dos Abrahão David.
Mas há fissuras no cenário. Uma delas, minha maior angústia como torcedor e apaixonado por carnaval, é a dependência da Beija-Flor da liderança de seu patrono. Para mim, está claro que vai se repetir em Nilópolis a trajetória da Mocidade, escola dominante que murchou drasticamente após a morte do seu patrono, e hoje luta para não cair. A inexistência de potenciais lideranças é alarmante e será fatal à Beija-Flor.
7 – Recentemente você participou da elaboração de um documentário sobre as “mulatas” das escolas de samba (acima, assista ao trailer). E assistimos a um progressivo desvirtuamento da posição de passista de escola de samba em nosso carnaval. Quais as iniciativas que em sua opinião poderiam ser tomadas para a revitalização deste personagem tão importante em nosso carnaval ?
AAM – Sou o roteirista de “Mulatas! Um tufão nos quadris”, o primeiro documentário sobre passistas de escolas de samba, que chegará aos cinemas agora em fevereiro, e fui o produtor e coordenador do concurso Mulata do Gois, no Globo. Conheço, em graus diferentes de intimidade, quase cem passistas de escolas grandes, médias e pequenas. Vejo um renascimento da dança do samba, com a valorização do personagem no carnaval e fora dele. As mulatas são cada vez mais valorizadas pela dança e beleza. Como referendo, acabamos de ter uma – a mais bonita de todas para mim, Jaqueline Faria, da Beija-Flor – escolhida para participar do BBB 12.
As passistas fazem parte de um estrato social que melhorou no governo Lula. Ganhou dinheiro, força, cidadania. Elas estão evoluindo, aprendendo a se valorizar. Ainda há muito por fazer. Mas o cenário já foi muito pior. Falta, às escolas, acompanharem a valorização que as mulatas estão conseguindo sozinhas no resto do ano. Tirar a ala de passistas do fundo do carro de som, dar destaque às musas do samba, reconduzi-las ao posto de rainha de bateria (no Grupo Especial, só a Beija-Flor escolhe a sua na comunidade). Será melhor para a festa.
8 – Os amantes de carnaval vem assistindo a resultados bastante questionáveis na última década, não somente no Grupo Especial quanto nos Grupos de Acesso – como já ressaltei aqui algumas vezes na Série “Samba de Terça”. O que poderia ser feito a fim de melhorar os critérios de julgamento e torná-los mais afinados com o que passa pela avenida ?
AAM – Outra história que é bem mais sofisticada do que supõe a choradeira de quem não ganhou na Quarta-Feira de Cinzas. O resultado do desfile é um supermercado de propostas, negociações e interesses os mais variados. Na Saara (não o deserto, mas o comércio popular) dos mapas de notas, cada um vai em busca de um objetivo. Tem escola que só não quer cair, outras que querem voltar nas campeãs, algumas poucas que fazem o preciso para disputar o título.
Mas, paradoxalmente, o primeiro lugar não é tão desafinado assim. Vamos lá: assisti a todos os desfiles na avenida desde 1988, o inesquecível ano de Kizomba. Nesses 23 carnavais, a melhor escola, sem dúvida para ninguém, ganhou em 88, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 2002, 2003, 2007, 2008, 2009, 2010 – 17 desfiles [N.doE.: como já escrevi em outras ocasiões, discordo fortemente de 1995, 99 e 2003, em especial os dois últimos]. Em 2000 e 2005, foi meio zero a zero, sem desfiles que se destacassem. Injustiça mesmo, houve em 89, 2001, 2004 e 2006. É pouco, pelo que sempre se suspeita da campeã.
E, nesses anos todos, há alguns momentos de memorável honestidade. Em 1992, a Mocidade de Castor de Andrade, capo dei tutti cappi do samba, vinha em busca do tri com um samba de antologia e Renato Lage bombando. Ganhou (com toda a justiça) a pequenina Estácio. Em 2002, a Beija-Flor, torturada pelo trivice para a Imperatriz, perdeu da Mangueira por um mísero décimo. E com justiça – a verde e rosa foi melhor. Agora, em outros setores da classificação, a bandalheira grassa. Não acho explicação razoável, por exemplo, para a longevidade da Tradição no Grupo Especial, para o Salgueiro ter ido parar em sétimo no ano de Candaces (2007), ou para a sua amada Portela não ter caído em 2005, quando a Velha Guarda não conseguiu desfilar. Além, claro, da barbaridade suprema, o vice de “Ratos e urubus”. E no Acesso é ainda pior, por ser mais desamarrado.
O caminho para melhorar passa obrigatoriamente por aquela palavrinha maldita no mundo do samba: transparência. A Liga poderia, pelo menos, filmar a entregue dos mapas dos jurados e botar na internet. Mas não. Ainda segura as justificativas dos jurados por meses e, quando divulga, é o papel manuscrito, sem a delicadeza de uma digitação. Fala sério.
9 – O que você pensa a respeito da literatura disponível sobre esportes e sobre carnaval? Quais livros indicaria como referências nos dois assuntos?
AAM – Nos dois temas, a oferta é crescente – mais no esporte do que no carnaval, pelo tamanho dos dois assuntos. Estou lendo avidamente a biografia do Agassi e sempre consulto o Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, de Felipe Ferreira. Mas há diversas opções.
10 – Quais as suas expectativas para os desfiles das escolas de samba dos principais grupos em 2011?
AAM – Há um destacado favoritismo da Beija-Flor, pela escolha do enredo, a qualidade do samba e a competência da escola para desfilar. Vai ser muito difícil perder. Caso aconteça, os candidatos a ganhar são Salgueiro e Grande Rio. Posso estar muito enganado, mas não acredito no bi da Tijuca. Palpite puro.
11 – Um desfile inesquecível. Por quê ?
AAM – Fácil – “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” [N.doE.: acima, o vídeo]. O maior desfile que já houve, um momento de absoluta genialidade de uma escola – e não apenas de Joãosinho Trinta, como passou à História – que jamais repetirá. E quando eu decidi ser Beija-Flor.
12 – Um livro inesquecível. Por quê?
AAM – Difícil. “Todos os homens do presidente”, que me fez escolher o jornalismo. Todos de Nelson Rodrigues. Muitos, muitos livros.
13 – Uma canção e um samba enredo inesquecíveis. Por quê?
AAM – “Construção” e “Quem te viu, quem te vê”, do Chico, as obras mais geniais da MPB. “Heróis da liberdade”, do Império Serrano, e “Os sertões”, da Em cima da hora. Obras-primas.
14 – Livro ou filme ? Por quê ?
AAM – Como diria uma antiga rainha de bateria da Mangueira, cada qual com seu cada qual. Há lugar pros dois.
15 – Finalizando, com os agradecimentos do Ouro de Tolo, algumas poucas palavras sobre o blog ou seu autor/editor.”
AAM – Eu que agradeço. Somos amigos via internet, fiéis da mesma religião – o carnaval, e sofredores pela mesma causa, o Flamengo. Gente assim está condenada a ser melhor qualidade.
Concordo em muitos pontos, discordo em muitos outros. Pensei que o Aydano fosse Império Serrano. Agora, o lance de discutir resultado de carnaval é muito subjetivo. Eu acho o desfile da Beija-Flor em 1989 fodástico, antológico, inesquecível etc etc etc (e nao me canso de tecer loas a esse desfile) MAS… a Imperatriz foi melhor. A BF perdeu no SAMBA, que era uma merda, uma porcaria (lebaraô, ébolebará…). Como carnaval é conjunto e são todos os quesitos, a Imperatriz vinha com um samba antológico e venceu por meio ponto. E ele discorda do resultado de 2006… quem merecia ganhar, na opiniao dele? rs
Sobre o lance da Cidade do Samba, concordo plenamente com ele. Mal administrado (o prefeito da cidade do samba é o filho do Capitão Guimarães) e isso se estende às instalações do sambódromo: desconfortáveis! Mas isso vai mais pelo poder de exigencia do povo. Atualmente paga-se 250 reais (POR NOITE DE DESFILE!) para assistir as escolas de samba, no Grupo Especial. Era pra ter mais conforto, lugar marcado, assento pro público, mais banheiros disponíveis (limpos!) e oferta de alimentação. E menos vendedores se acotovelando nas arquibancadas (toma-se porrada de tudo qto é jeito, agua de isopor pingando em cima de você, isso quando os vendedores não riscam o valor do sorvete, do refri, da cerveja e da agua na camisa, para ludibriar os consumidores).
Ainda estamos na pré-historia da qualidade, em se tratando de samba. Um dia melhora. Basta tirar do comando do carnaval pessoas que estão ha seculos em seus feudos e pessoas que usam o samba como forma de alpinismo social.
Injustiça no carnaval de 1989? Lá vem esse assunto de novo! Venceu a melhor escola, que tinha o melhor samba-enredo daquele carnaval. Mídia nem sempre faz uma escola campeã. Pena que na “história” ficou o desfile da vice-campeã e nunca o da Imperatriz, que por merecimento, deveria ter sido também campeã em 1996, em vez da Mocidade.
Adorei o Jogo Misto. É minha coluna favorita do Ouro de Tolo. Também sou apaixonada pela Beija-Flor, como Aydano. Beijo, Anna Barros
Rodrigo, sobre 96 eu estava na Sapucaí e nunca vi um desfile tão gelado como o da Imperatriz. Se tem alguém que pode reclamar de ter sido roubado é o Império, que deveria ter ficado em terceiro.
Sobre Cidade do Samba, concordo plenamente.
Discordo, Pedro. O desfile da Imperatriz em 1996 foi irretocável. E em matéria de “gelo”, como é que no sábado das campeãs a reação da plateia foi outra, com direito a gritos de “é campeã” como se fosse a primeira?
Eu estava lá, rapaz…
Rodrigo, acho que ganhando a Mocidade ou a Imperatriz – eu estava lá também – estaria de bom tamanho.
Mas o desfile oficial da escola foi muito frio.