De volta após pequeno intervalo, a coluna “Sobretudo”, do publicitário Affonso Romero, inicia sua versão 2011 com um pedido muito especial de “Feliz Ano Novo”: contando uma boa história.
O texto fala por si.
Sobretudo – Feliz Ano Novo, Peter.
Passei boa parte da primeira quinzena de dezembro lendo o excelente “Cidade de Ladrões”, de David Bennioff. Leitura entrecortada, feita um pouco a cada dia, sempre no trem entre minha casa e o trabalho. Não obstante, li cada linha com atenção reverente, consciente de que estava na companhia de um dos melhores livros que eu já tive em mãos.
Terminada a leitura, emprestei meu exemplar de bolso para o pessoal do trabalho, com uma forte recomendação. E comprei mais três exemplares: um para tê-lo sempre na estante, outros para presentear meu pai e minha esposa. Para que o amigo leitor veja o quanto o livro me impressionou positivamente.
No primeiro capítulo o autor conta que, convidado a escrever algo sobre sua própria vida, e por achá-la monótona e desinteressante, acaba recorrendo ao avô, um frágil judeu russo de aspecto inofensivo que imigrou para os Estados Unidos após a II Guerra Mundial. Mas sobre o qual havia uma lenda familiar de que, durante a guerra, teria matado dois alemães a facadas antes de completar a maioridade. O livro é, daí em diante, o relato em primeira voz do então adolescente Lev Beniov sobre sua aventura e desventuras na Leningrado sitiada do início da década de 1940. O autor nos alerta sobre as imprecisões e lacunas de memória reproduzindo o conselho do próprio avô que viveu os fatos: “David, você é um escritor: invente.”
Portanto, não se pode saber o que se passou efetivamente com Lev, o que o velho russo acrescentou de heroísmo a si mesmo, e o que o neto admirado criou ou poetizou. Mas tem-se a certeza de que a obra, além de envolvente como boa aventura que é, tem precisão histórica, bom humor (apesar das circunstâncias), aquele quê de non-sense que só é possível extrair da mais dura realidade, um profundo e sincero humanismo e um texto impecável. Como é expresso nas linhas abaixo, apresentadas logo no início do livro:
“Nunca tínhamos sentido tanta fome; nunca tínhamos sentido tanto frio. Quando dormíamos, se dormíamos, sonhávamos com as delícias que tínhamos comido de maneira tão descuidada sete meses antes — todo aquele pão com manteiga, os bolinhos de batata, as salsichas — comidos com desatenção, engolindo sem sentir o gosto, deixando grandes sobras em nossos pratos, restos de gordura. Em junho de 1941, antes de os alemães chegarem, achávamos que éramos pobres. Mas junho ficou parecendo o paraíso quando veio o inverno.”
“Cidade de Ladrões” não é um livro sobre o reveillon de 1942. Seria mais correto afirmar que é um livro sobre a ausência de qualquer festa ou esperança durante aquele inverno especialmente duro. Apesar disso, e de forma surpreendente, o livro relata episódios de festa e esperança. E, sem ser também um livro sobre sexo, amor, terror, família, política,  canibalismo, galinhas, superação, adolescência e esportes de inverno, tem uma boa parcela disso tudo. É inegável que o livro tenha uma linha condutora assentada na construção da amizade entre Lev e Kolya, o encontro entre dois jovens bastante distintos unidos pelas circunstâncias da guerra, o que seria um lugar-comum, não fosse um livro único.
Em tudo, o autor é cuidadoso e especial, usando todo seu talento e técnica em benefício do leitor. Cenas absurdas de tão grotescas e desumanas são descritas sem que pareçam chocar, mas sem perder em realismo. O humor por vezes irônico do narrador e de seus companheiros de tragédia em nenhum momento desrespeita àqueles que viveram os horrores da invasão nazista, ao contrário, envolvem mais e mais o leitor na tragédia humana, como uma armadilha na qual se entra por livre iniciativa e não se quer sair, nem ao final da história.
Ao frio, à fome e à fadiga somam-se as situações-limite de uma aventura que igualmente tira o fôlego do leitor. E, ao mesmo tempo, a obra é muito mais do que uma aventura adolescente em ritmo cinematográfico, ainda que também seja isso e jamais pareça pretensiosa. Enfim, um grande livro, um futuro clássico.
O caro leitor talvez já saiba do meu interesse pela Segunda Guerra. Já abordamos o tema aqui na Sobretudo em duas ocasiões, uma delas sobre o cerco a Stalingrado. Enquanto a cidade situada ao sul da Rússia – menor e em local de frio menos intenso – foi disputada casa a casa entre o Exército Vermelho e as tropas de Hitler, com a progressiva evacuação da população civil para a margem oposta do Rio Volga; em Leningrado – cidade mais populosa, extensa e fria, à beira do Mar Báltico – a máquina de guerra nazista evitou o custo de confronto direto, preferindo bombardear e sitiar a cidade até que o último dos seus habitantes morresse de frio e fome.
É nesse terrível cenário que o destino une Lev e Kolya na improvável missão de conseguir uma dúzia de ovos. Leningrado era o nome dado pelos comunistas à antiga capital do império czarista, São Petersburgo. A cidade, bela, imponente e histórica, continuou a ser chamada por seus habitantes pelo nome original (o que poderia causar a prisão ou a morte, aliás) ou, de uma maneira informal e carinhosa, simplesmente de “Peter”.
A história começa em Peter, na virada de 1941 para 1942 e não há nada para se comemorar. Tudo se passa em apenas uma semana. Ao final, sabe-se que 1942 foi um ano difícil, que obviamente nem todos foram felizes para sempre, mas lembre-se que tudo foi contado por um velho judeu russo que sobreviveu a isso tudo. Afinal, alguma esperança sempre há.
Meu único problema ao ler “Cidade de Ladrões” foi fazer permanentemente ao longo de cada um dos capítulos uma analogia entre Peter e o mundo atual. Provavelmente, esta jamais tenha sido a intenção do autor, eu que devo estar numa fase um pouco pessimista. Mas, se você para e pensa um pouco, talvez também encontre as semelhanças que eu vi entre a Leningrado sitiada do início dos anos 1940 e o mundo onde vive. 
Afinal, os recursos não estão se esgotando numa velocidade perigosa? Há alguma forma de transpor o “cerco” no qual o Planeta foi sitiado? O clima passou a ser motivo de preocupação? Há alguma guerra lá fora? E quantas vezes, só no última mês, alguém já lhe pediu para ir pegar “uma dúzia impossível de ovos”, um pedido que, nas circunstãncias em que foi feito, não faz sentido algum? O pior dos mundos é aquele em que todas as mazelas começam a parecer bons argumentos para as ações mais pérfidas.
Bem, no final, o avô de David Bennioff pôde sentar-se na varanda e contar sua história. Feliz 1942, Peter! Feliz Ano Novo, mundo! 
Como o David Bennioff é também um conhecido roteirista e argumentista em Hollywood (Tróia, X-Men etc.), e já teve um sucesso literário anterior adaptado para a tela (The 25th Hour, com Edward Norton, por Spike Lee), “Cidade…” certamente terá, em breve, a versão cinematográfica que merece. Enquanto isso não acontece, verei em video o relativamente recente “Leningrado”, com Gabriel Byrne, que está no meu pacote da locadora para este final de semana. Será comentado em breve nesta coluna.
Para fechar a coluna de hoje (e o ano que acabou de se encerrar) de uma forma mais otimista, deixo mais duas sugestões ao amigo leitor:
– O livro “Clube do Filme”, do canadense David Gilmour. Relato autobiográfico de um crítico de cinema numa fase de entresafra profissional cujo filho adolescente tinha sérios problemas na escola. Ambos selam um acordo e passam a assistir semanalmente a clássicos (e alguns lixos) do cinema. Gostei muito e dei de presente para meu filho adolescente. Leitura mais leve, com alguns momentos um pouco piegas. Recomendo com entusiasmo menor do que tive por “Cidade de Ladrões”, mas, ainda assim, é uma obra imperdível para quem gosta da sétima arte e tem filhos fazendo a transição para a idade adulta.
O blog AfroCubanLatinJazz, um verdadeiro paraíso hispânico para quem curte os grooves das diversas vertentes do jazz cubano e latinoamericano. Links desde discos históricos até lançamentos do ano que se encerra.
Feliz 2011 e um grande abraço.”