O bom de se viajar a trabalho é que se consegue ler bastante. Até porque como não dirijo para chegar ao trabalho nestas ocasiões, consegue-se ler bastante no transporte que nos leva à refinaria.
Nossa resenha de hoje é de um livro que mostra como a hipocrisia permeia as relações políticas internacionais; bem como explicitar o quão pouco vale a vida humana quando se contrariam interesses dos donos do poder.
Craig Murray chegou ao Uzbequistão em 2002 para ser um dos mais jovens embaixadores da história do Reino Unido. Com 43 anos, era uma carreira brilhante que chegava a um ponto bastante alto.
Eram tempos pós onze de setembro e esperava-se que o novo representante inglês no país trabalhasse no sentido de manter como aliado o país da Ásia Central, ex-república soviética rica em petróleo e gás e que possuía em seu território uma base militar norte-americana e era ponto estratégico na passagem ao Afeganistão. Além disso corroborar a política americana na região – eram tempos de “relações carnais” entre os Estados Unidos e a ilha européia.
Entretanto, assim que chega ao país o novo embaixador assiste a um nada justo julgamento de dissidentes políticos e recebe fotos de um opositor do regime literalmente fervido e cozinhado em água quente igual a um frango ou um pedaço de carne.
A partir daí Craig Murray passa a usar seu prestígio de representante britânico e sua imunidade diplomática no sentido de defender os direitos humanos e a dissensão ao regime ditatorial do presidente Karimov. Outrossim, passa a representar os interesses de empresas britânicas de uma forma de “capitalismo” bastante peculiar empregada no país, onde os parentes do mandatário controlavam com mão de ferro todas as principais empresas do Uzbequistão.
Só que a oposição do embaixador começa a criar embaraços a Londres e, especialmente, aos EUA. A mensagem era clara: Karimov é um aliado na então “Guerra contra o Terror” e, portanto, é um promotor dos direitos humanos, do capitalismo – não deve ser importunado.
Além disso, as mensagens de Craig Murray abjurando provas obtidas sob tortura de eventuais “terroristas” começaram a afetar as relações bilaterais EUA-Reino Unido: depois se saberia que os americanos enviavam ao país prisioneiros para serem torturados na base militar.
Permeando estes fatores há a luta para se fazer respeitar o corpo diplomático em uma república despótica e, ao mesmo tempo, estruturar a representação da Grã Bretanha no país.
Longe de se fazer parecer um paladino da luta contra a tortura e a favor dos direitos humanos, Murray mostra as suas aventuras pela noite da cidade, sua fama de “bom copo” e suas aventuras amorosas por Tashkent, capital do país asiático.
Sua atuação como paladino dos direitos humanos começa a incomodar o Ministério das Relações Exteriores britânico, e começam a forjar-se provas para removê-lo do cargo. Em um primeiro momento, apoiado pelas empresas que possuíam representação no país e outras entidades, mantém-se no cargo, mas acaba sendo destituído em meados de 2004.
Neste meio tempo ele sofre um problema de saúde que no livro insinua ter sido provocado – ou seja, uma tentativa de assassinato. E ainda conhece uma “stripper” uzbeque pela qual se apaixona, causando o fim de seu casamento.
Removido da embaixada devido aos interesses anglo-saxões, acaba por passar um período de miséria até um acordo de rescisão onde sai da carreira diplomática. Logo depois o governo de Tashkent entrega aos russos a exploração de petróleo e gás, e o governo aliado se torna uma ditadura implacável, inimiga dos direitos humanos, anti-capitalista e que deve ser perseguida…
Com isso Murray é meio que “reabilitado”, e embora o livro termine neste momento, examinando-se sua trajetória posterior percebe-se que ele retornou a um patamar de vida confortável – hoje é reitor da Universidade de Dundee, na Escócia.
As memórias do embaixador mostram a hipocrisia que comanda o relacionamento entre os países, também deixando claro que a máxima de Maquiavel de que “os fins justificam os meios” é o motor das relações. O livro também é muito interessante ao mostrar a burocracia interna da diplomacia e o que move estas engrenagens.
Quanto ao Uzbequistão, continua hoje o que sempre foi depois de se separar da extinta União Soviética: uma cleptocracia onde a oposição é esmagada, cozinhada em água fervente e, depois do alinhamento recente com os russos, “inimiga” das potências ocidentais. Merece destaque o “Massacre de Andijon”, em 2005, onde número inestimável de pessoas foi morta em protestos pela democracia – muitas por falta de socorro após o Exército abrir fogo contra os manifestantes.
Eu me pergunto como próceres esportivos como Zico, Felipão e Rivaldo foram utilizados na propaganda do país ao trabalhar no Bunyodkor, hoje principal time de futebol do país e que tem no governo seu patrono. Emprestaram sua imagem a uma ditadura que tortura, mata e rouba.
Murray também mostra como um atentado a bomba na capital Tashkent, feito pelo próprio governo a fim de culpar opositores, foi utilizado pela CIA para estimular a opinião pública contra a Al Qaeda e os muçulmanos. Além disso descreve a rota do ópio afegão e do envolvimento direto dos líderes uzbeques (e dos políticos protegidos dos americanos no Afeganistão) na exploração do tráfico desta droga.
Hoje o ex-embaixador vive na Escócia com a esposa, Nadira (foto abaixo), a ex-stripper que conheceu no país. O casal tem um filho.
A edição brasileira é tradução da versão americana, muito mais completa que a inglesa – extensamente censurada pelo governo local. Custa R$ 46 na Livraria da Travessa.
Penso que é indispensável para aqueles que gostam de geopolítica, de política e para mostrar como pessoas em posição de poder podem ser sórdidas ao extremo – tanto no governo de um país, quanto em posições de chefia em um departamento ou autarquia governamental.
Enquanto pesquisava para escrever esta resenha, caiu-me em minha tela as fotos a que me refiro no início – a do oposicionista fervido e cozinhado vivo pelo regime. São imagens fortes.
Impossível não se revoltar.
Quando o Blog da Dilma diz “os fins justificam os meios”, leia-se que a hipocrisia vale internamente no nosso país. Para governo e oposição.
Mas usar isso para manter o governo, equivale ao apoio de uma ditadura, como descrito no livro. Muito interessante a colocação do Blog da Dilma, principalmente em um momento que blogueiros do PT indicam o querem: cassar a existência de qualquer um que se oponha a eles.
Bruno, acho que precisamos filtrar bem o que lemos, a contra-informação está a todo vapor.
Acho muito mais fácil um Governo Serra calar a imprensa que um governo Dilma, basta ver o que se faz em São Paulo. Neste momento memso tenho um amigo que teve a “cabeça” pedida pelo candidato psdebista ao órgão de imprensa onde ele trabalha.
Não caia na esparrela de achar que cairemos em uma ditadura, porque não cairemos.
abs
Cairemos sim, à moda Chavez. Poderia ser até pior: à moda Hitler, com os movimentos sociais fazendo o papel da SS e da Juventude Hitlerista saindo às ruas, cobrando a obrigação de divulgar apenas a versão do PT. Se continuar assim, pode evoluir na pior hipótese deste modo, é só esperar. Agora AINDA não… Esperemos mais alguns anos.
É só esperar. Você não acredita porque você é parte do título do livro da última resenha literária antes desta: “Enganado”.
Quanto ao Serra, já disse antes que ele também cederia à tentação… Sou crítico a quem achar (em minha opinião) que merece… E não preciso defender corrupto por estupidez ou para manter meu emprego.
Bruno, acho que você está sendo injusto comigo. Eu jamais defenderia “corruptos” por interesse pessoal. Acho sim que o país melhorou e que para a empresa em que eu trabalho a volta do PSDB seria péssima, mas me reduzir a um “teleguiado” não me parece razoável.
E também acho que se o PT tivesse este pendor autoritário todo não só Lula teria aprovado o terceiro mandato como já teria fechado umas três redes de televisão e uma meia dúzia de revistas. Até porque algum tipo de limite se precisa fazer.
abraço forte
Se você acha que jornalismo bom é o do Página 13, sua opinião. Acho nojento e lesivo ao interesse nacional. Feito por idiotas para idiotas. Ou, lembrando do “Admirável Mundo Novo” de Y para Y.
Você está sendo um teleguiado sim, porque acha que este é um governo de esquerda e QUER acreditar nisso. Não é. Se você acha que devem ser fechadas algumas redes de televisão ou meia dúzia de revistas, problema seu. Eu só afirmo que a outra opção que o PT (repito: o PT, não Lula) gostaria é mais nojenta ainda. Lula não vai controlar o partido fora do governo. Isso exige um esforço que ele não vai se dispôr a fazer depois de sair da presidência. O resultado, você verá. É segundo a definição confidenciada pelo Brizola à Danuza Leão “uma ditadura stalinista”.
Bruno, discordo radicalmente, mas paciência.
Só quero deixar claro que não defendo o fechamento de tvs e rádios, mas sim que estes sejam responsabilizados pelo que divulgam e publicam, caso seja mentira.
Quanto a um governo de esquerda, o texto de sábado fará uma boa distinção disso.
Pedro, eu estava namorando esse livro pelo site da cia das letras, mas me recusava a adquiri-lo por achar que o autor estaria limitado pelos atributos aventureiros do cargo (bebedeira, mulheres, ridicularizar os paises visitados), mas sua resenha me convenceu. Talvez lhe interesse um outro título com a mesma configuração lançada pela cia das letras: A Era do Inconcebível (o li e achei interessante).
Só uma coisa: a crítica que fazes ao fatalismo do Bruno, acho que cabe na mesma medida sobre suas opiniões quanto à Palin.