Hoje é quarta feira, dia da nossa mais nova coluna, a “Cacique de Ramos” – assinada pelo publicitário, amigo e historiador Fabrício Gomes.
O texto de hoje é o sobre o ISEB, um dos institutos pioneiros de estudos do Brasil. O texto é um pouco longo mas vale muito a pena a leitura.
ISEB: Interpretações, tensões e representações na construção de um Projeto de Nação (1955-1964)

Aos treze dias do mês de abril de 1964, sob decreto presidencial nº 53.884, Paschoal Ranieri Mazzili, então presidente da República em exercício, tornava extinto o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), selando em definitivo o destino da instituição. Alguns dias antes, o ISEB fora invadido e depredado por grupos que se diziam revolucionários; e sua sede situada na Rua das Palmeiras, 55, no bairro de Botafogo – zona sul do Rio de Janeiro – foi praticamente destruída e seus documentos, arquivos e livros foram apreendidos pelas “forças de segurança” ou então consumidos pelo fogo.

Começaria o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 481, do qual o coronel Gerson de Pina, lotado no Quartel do I Batalhão da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, seria o encarregado de investigar as atividades supostamente subversivas do recém-extinto ISEB – apontado como um dos artífices da instabilidade política e social do Brasil no início da década de 1960.
Entretanto, em meio a essa movimentação de repressão um fato permaneceu despercebido ao longo desses anos – e que acabou por ser um dos fatos que instigaram a realização deste projeto: o fato de que parte da biblioteca do ISEB estar localizada, atualmente, nas dependências da Escola Superior de Guerra (ESG), tendo sido levada pelo marechal Osvaldo Cordeiro de Farias – novo ministro do Interior do Governo Castello Branco.

O ISEB foi uma instituição que, durante a década de 1950 e início da década seguinte permeou o pensamento social e político brasileiro. Foi criado em 14 de julho de 1955, sob decreto nº 57.608, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura. O ISEB representou a incursão de um grupo de intelectuais, de distintas orientações políticas e ideológicas, no universo das idéias da problemática brasileira e, de acordo com a historiografia, teve fases distintas em seus nove anos de existência, onde foram formulados e intensamente debatidos projetos econômicos, sociais e culturais.

Seus principais integrantes foram os filósofos Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Michel Debrun; o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos; os economistas Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida e Ewaldo Correia Lima; o historiador Nelson Werneck Sodré; e os cientistas políticos Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes de Almeida.

A coexistência de liberais, comunistas, social-democratas, católicos progressistas (oriundos, em alguns casos específicos, do integralismo), nacionalistas históricos e até defensores do capital estrangeiro, entre outras correntes minoritárias dentro do ISEB, numa multiplicidade de idéias em torno de um projeto comum de desenvolvimentismo tornou possível perceber a necessidade em analisar a auto-representação de seus integrantes durante e depois da existência desta instituição.

O projeto do ISEB datava de muito antes da criação do instituto. Sua gênese encontrava-se num suplemento cultural na 5ª Página do Jornal do Commercio, publicado a partir de 24 de julho de 1949, semanalmente às sextas-feiras, em artigos de Helio Jaguaribe e Oscar Lorenzo Fernandez. A 5ª Página foi conseguida graças ao poeta Augusto Frederico Schmidt (amigo de Helio Jaguaribe), que interveio junto ao diretor do jornal.

A partir de 1952, um grupo de estudiosos do Rio de Janeiro e de São Paulo começou a se reunir, periodicamente, na cidade de Itatiaia (RJ) para discutir os grandes problemas da época. O local fora estrategicamente escolhido, já que se situava na metade do caminho entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Daí a denominação de Grupo de Itatiaia, pela qual o grupo ficou conhecido. Constava na pauta dos encontros o esclarecimento de problemas relacionados à interpretação econômica, sociológica, política e cultural de nossa época, com a análise, em particular, das idéias e dos fenômenos políticos contemporâneos e com o estudo histórico e sistemático do Brasil, encarado, igualmente, do ponto de vista econômico, sociológico, político e cultural.
 

Atendendo a necessidade de se tornar esses estudos mais sistemáticos – demanda diagnosticada pelos integrantes fluminenses do Grupo de Itatiaia -, alguns meses depois, já em 1953, seria criado o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), responsável, entre 1953 e 1956, pela edição de cinco volumes dos Cadernos de Nosso Tempo. A importância do IBESP e dos Cadernos é que eles continham toda a ideologia do nacionalismo, que ganharia força cada vez maior no Brasil nos anos subseqüentes, e serviriam de ponto de partida para a constituição do ISEB.

O ISEB foi fruto da institucionalização do IBESP no contexto governamental e representou uma singular reflexão sobre a problemática brasileira dos anos 50. Havia, um ano antes da criação oficial deste instituto, a idéia de se construir um instituto nos moldes do College de France ou, em termos latino-americanos, um instituto espelhado no Colegio de Mexico, sendo Hélio Jaguaribe o principal artífice na elaboração dos trabalhos preparatórios, com o nome de Colégio do Brasil. Outra proposta era fazer algo equivalente à Presses Universitaires de France, uma grande editora que permitisse ao intelectual brasileiro um instrumento dotado de ampla difusão de idéias e acesso a livros de alta cultura.

O suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954 adiou o projeto, mas no ano seguinte, sob decreto presidencial no âmbito do Ministério da Educação foi criado o ISEB; reunindo um conjunto de atividades de estudos e ensino, com autonomia de pesquisa e cátedra e dividido em departamentos, sendo que alguns acadêmicos desempenhariam atividades não-remuneradas diante da verba bastante restrita.

De acordo com a perspectiva de Hélio Jaguaribe, o ISEB fundamentava-se em três planos: um plano teórico geral, que buscava compreender a problemática do mundo contemporâneo; um plano teórico aplicado a realidade brasileira, que buscava uma análise estrutural da realidade brasileira; e um plano direcionado para o encaminhamento de uma práxis política, através da elaboração de uma ideologia nacional-desenvolvimentista que refletisse os anseios da sociedade brasileira.

Ao identificar e refletir os problemas concretos da realidade brasileira, o ISEB apresentava algumas alternativas – tendo como embasamento os campos de estudos específicos os quais a intelligentsia isebiana era participante. Teceu críticas ao Brasil primário-exportador, representando ao mesmo tempo as idéias dos setores progressistas da sociedade, coligados e orientados para o desenvolvimento econômico-social, e a afirmação do nacionalismo.

Os intelectuais do ISEB estudaram as relações entre as ideologias, as estruturas sociais e as fases históricas da sociedade. Participou ativamente da formulação de um projeto nacional-desenvolvimentista, sendo este o modelo que mais adequava-se ao desenvolvimento nacional brasileiro. O nacional-desenvolvimentismo, sob a ótica de interpretação isebiana buscava elaborar e implementar um projeto integrado de desenvolvimento social, econômico, político e cultural, a partir de uma concepção social-humanista, gerando uma democracia política e social, numa sociedade aberta para a realização igualitária, livre e racional. Este projeto privilegiava também a idéia de que o cenário nacional e internacional integrava uma sociedade de classes.

A proposta nacional-desenvolvimentista era a de um nacionalismo mobilizador, que se por um viés dinamizava os interesses dos setores progressistas, por outro os conduziam a concessões recíprocas. Isso levaria, em última instância, a um desenvolvimento integrado do país. A proposta nacional-desenvolvimentista do ISEB dirigia- se, notadamente, à burguesia nacional, que atuava em contraponto ao setor tradicional, representado pelas forças latifundiárias e mercantis, orientado, em sua sintaxe, à manutenção da antiga sociedade primário-exportadora. Esta proposta endereçava-se igualmente ao setor progressista da classe média, através da mobilização e conscientização dos setores técnicos e gerenciais – originários da crescente industrialização -, destacando principalmente que seus interesses vinham ao encontro da transformação industrial que passava o Brasil. O setor proletário também era alvo da proposta nacional-desenvolvimentista: os trabalhadores industriais e seus sindicatos deviam apoiar o processo de industrialização.

A problemática do desenvolvimento brasileiro expôs, desde o início do Governo JK, a existência de duas vertentes: 1) A tendência que sustentava a participação de capitais estrangeiros na economia brasileira para acelerar o ritmo de sua expansão; 2) A tendência que defendia o caráter autônomo do processo de industrialização no país, admitindo a presença do capital estrangeiro apenas sob o rígido controle do Estado.

Os conflitos provocados entre os adeptos dessas duas orientações causaram um ponto de ruptura em dezembro de 1958, quando Hélio Jaguaribe publicou O nacionalismo na atualidade brasileira. A publicação deste livro gerou o confronto aberto e críticas por parte de setores mais nacionalistas da sociedade brasileira, incentivados por Guerreiro Ramos – integrante do ISEB. O ISEB passou por uma clivagem: de um lado o grupo de posição problematizante do instituto (comandado por Helio Jaguaribe) e do outro, os que defendiam a idéia de que a fase teórica do instituto já havia chegado ao limite, e que era chegado o momento de se partir para uma ação mais progressista e transformadora do instituto.
 

Se antes existia uma tolerância ao capital estrangeiro dentro do instituto, a publicação de O nacionalismo na atualidade brasileira gerou o confronto aberto e críticas por parte de setores mais nacionalistas da sociedade brasileira, incentivados por Guerreiro Ramos – também integrante do ISEB. Esta querela fomentou a imediata saída de Guerreiro Ramos e alguns meses depois, o afastamento do próprio Jaguaribe da instituição.

Roland Corbisier liderou o ISEB nos anos de 1959 e 1960, quando a temática do instituto expressava a idéia de que, passada a fase teórica e problematizante, devia-se mobilizar o país através do nacional-desenvolvimentismo.

A partir de 1960, sob a direção do filósofo Álvaro Vieira Pinto e do historiador marxista Nelson Werneck Sodré, o ISEB entrou num período mais engajado com o debate das reformas sociais e econômicas, envolvendo-se mais diretamente na campanha do plebiscito sobre a manutenção do regime parlamentarista, em 1963, e também com as reformas de base do Governo de João Goulart.

Entretanto, com base na perspectiva de Hélio Jaguaribe, as condições de ordem estrutural do Brasil, no período imediatamente posterior ao início dos anos 1960 tendiam para desvirtuar o plano inicial do ISEB, de um processo autônomo, genuinamente nacional de desenvolvimento econômico e social.

É relevante e perturbador perceber que embora assumisse a concepção e condução de uma ideologia que se materializou no projeto nacional-desenvolvimentista – projeto abraçado pelo Governo – o ISEB estivesse situado no centro de um polêmico processo de investigação iniciado pelo Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), culminando com a instauração de um Inquérito Policial-Militar (IPM) semanas após o Golpe Civil-Militar ocorrido em 1964.”

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