Bom, é final de semana, e temos aqui mais uma crônica. Hoje um pouco diferente, porque é uma história real. Alguns detalhes aqui e ali podem conter imprecisões – lá se vão 21 anos – mas é uma história real.
Em 1988, eu fiz a oitava série, que era a última do antigo Primeiro Grau, como bolsista no Colégio Anglo Americano, na Barra da Tijuca. Era no tempo em que a Barra era quase deserta, ainda. A Avenida das Américas, onde ficava – e fica ainda hoje – o colégio, era quase um ponto isolado, junto com o suprermercado Freeway, naquela imensidão.
Segue o texto:
“O ano era 1988. A série, oitava, última do antigo Primeiro Grau.
A professora de português na volta das férias de julho propôs uma peça teatral sobre o folclore brasileiro. Eu havia feito confusão quanto à data do retorno e voltei apenas uma semana depois às aulas.
Quando voltei, a peça já estava mais ou menos escrita, com os seus papéis. Surgiu um impasse, porque eu era considerado um dos melhores em redação e, com a vaidade peculiar somada à imaturidade dos 13 anos exigi que fizesse parte da equipe redatora.
Havia ainda outro problema: como eu era bolsista e demorara a retornar, acreditaram que eu havia desistido e simplesmente eu era o único aluno sem quaisquer participação na peça teatral. Explico aos mais novos: naqueles tempos telefone era artigo de luxo, como eu não tinha aparelho em casa simplesmente não havia como me contactar.
Pois bem: ainda tentei forçar uma situação escrevendo em tempo recorde na velha máquina de datilografar uma outra peça – sobre escolas de samba! Óbvio que sequer foi vista…
Negocia daqui, negocia dali, marcou-se uma reunião no sábado seguinte para que eu visse o texto e desse algumas sugestões. Fez-se a reunião e escrevi algumas (pequenas) alterações, aceitas.
Entretanto, preciso ser justo: embora meu nome tenha aparecido como um dos autores, ao lado da Patrícia Moretzohn (filha de autora de novelas e, hoje, autora da novela Malhação, da Rede Globo), o texto é dela. Na prática, minha participação no texto é cosmética.

A peça contaria a história da capoeira como resistência cultural dos escravos ao domínio imposto a eles. Olhando retrospectivamente, não deixa de ser irônico ver adolescentes bem nascidos, praticamente todos brancos, contando a história dos negros…
Talvez como um prêmio de consolação deram-me um papel pequeno, mas fundamental na estrutura: eu era o escravo que morria a chibatadas no tronco, fato gerador do aparecimento da capoeira na peça. Tinha uma única fala, mas… 
A história era dividida em dois atos: o primeiro era a revolta dos escravos e sua repressão, e o segundo contava o surgimento da capoeira. Era até muito bem escrita.
Nos ensaios, eu ainda voltava no segundo ato como um dos escravos da roda de capoeira ao final, mas depois fui persuadido a não voltar: afinal de contas, estava morto e não pegava bem mortos voltarem para o mundo dos vivos. Duro era explicar isso para um garoto de 13 anos que já se achava inferior aos colegas e que tivera negados todos os seus pleitos…
Originalmente, meu papel tinha duas falas, mas uma foi cortada durante os ensaios. A menina que fazia o papel de feitora (preconizando os tempos modernos) era a Fernanda, uma já naquela idade alta e bela moça. Ela estava sempre com um chicote, mas, obviamente, apenas fingia que batia. Eu deveria estrebuchar igual a um porco no matadouro, morrendo sem dar um pio – acho que foi por isso que me tornei um economista…
Nossa roupa era uma calça de um tecido rústico branco e eu ficava sem camisa na peça. Era (extremamente) magro, embora não usasse ainda óculos, e a calça ficava um verdadeiro balão de gás em minhas pernas. Paciência…
Após exaustivos e, confesso, divertidos ensaios chegou o dia da apresentação. Não me lembro se foi aberto ao público externo, mas tinha muita gente naquele dia no auditório do colégio. Todo mundo nervoso, eu dando de ombros – quase não participava mesmo… só me aborreci porque a calça que me coube ficou parecendo aquelas vestimentas de palhaço.
Chegava a ser engraçado ver aquele monte de jovens, brancos e praticamente todos de classe alta ou média alta (adivinhem quem era a exceção) fazendo papel de escravos.
Inicia a peça, a história vai se desenrolando. Fernanda estava bonita de roupa de feitora  – antecipando os tempos vindouros de dominação da mulher – e chapelão de caubói.
Enfim acontece o meu minuto de fama efêmera – não eram quinze ? Sou levado por outros colegas ao tronco e vem Fernanada para executar a pena. Digo a minha fala e…
Ela resolve bater de verdade. Uma, duas, três, várias chicotadas. Eu gritando de verdade e a platéia indo à loucura. Penso que foi um dos minutos mais longos da minha vida.

Dei graças a Deus quando a cortina baixou.

Sinceramente até hoje não sei se ela se empolgou com o público e quis dar realismo à cena ou se acabou errando no fingimento e acertou de verdade.

Desci para a coxia, intervalo para o segundo ato, muito aborrecido. Estava com as costas completamente vermelhas e, confesso, muito puto. Minha vontade era trocar de roupa e ir embora, mas fui dissuadido a ficar. Da coxia, acompanhei o segundo ato.

Voltei ao palco, ainda vermelho e com dor, para os aplausos. Tudo correu excelente na apresentação e fomos muito elogiados. Acho que eu era o único a não sorrir. Nem dava, estava com uma dor…

Pelo menos ganhei um pedido de desculpas e um beijinho de Fernanda. Para um garoto pobre e feio como eu, era a glória. No final, tudo acabou bem.

Hoje recordo com saudade, mas custei a ficar contente na ocasião. Ainda mantenho contato ocasional com alguns colegas de turma, principalmente através do Orkut – algo que me deixa muito satisfeito. Principalmente porque, hoje, não fico nada a dever a nenhum deles. Venci.

Quanto à chicoteadora, perdi completamente o contato. Nunca mais vi. Entretanto, acredito que continue uma bonita e inteligente moça, como era.”