
A carta — fascinante por revelar a gênese da composição e, mais que isso, mostrar como e por que foram feitas as escolhas do artista por essa ou aquela palavra — é uma das maiores preciosidades encontradas em “Chico Buarque — História de canções” (Leya), de Wagner Homem. No livro, o autor apresenta os bastidores de cada música do compositor, desde a pré-história de sua carreira — de “Canção dos olhos” e “Marcha para um dia de sol”, apresentadas nos “sambafos”, encontros etílico-musicais da época de estudante de Arquitetura em São Paulo — até seu último disco, “Carioca”. Sempre de forma despretensiosa e leve.
— O livro não tem objetivo analítico, acadêmico — explica Homem. — São casos reunidos, não há uma tentativa de interpretação. Usando a linguagem cinematográfica, é uma panorâmica, não um close, uma busca de profundidade.
A contextualização histórica (a situação política do Brasil, a morte de amigos como Tom Jobim, o exílio, os períodos em que Chico se dedicou à sua porção escritor) no início de cada capítulo está afinada com sua ideia de “panorâmica”:
— Mais que entender a poética de Chico, a contextualização serve para que se compreenda sua carreira. Sobretudo até 1985 (quando se encerra o regime militar), sua história está amalgamada à do Brasil, às vezes até contra sua vontade.
A relação conflituosa de Chico com a ditadura começou, o livro mostra, já com a “A banda” — o governo quis usá-la numa propaganda de alistamento militar e o compositor protestou. Ela segue sendo testemunhada em sua obra: no nascimento dos pseudônimos Julinho da Adelaide, seu parceiro e irmão Leonel Paiva e o projeto de um “Pedrinho Manteiga”, todos criados para driblar a censura; nos versos substituídos (“nos teus pelos”, de “Atrás da porta”, virou “no teu peito”) para passar pelos censores; nas canções criadas para entrar no lugar das cortadas (“Noite dos mascarados” foi composta para cobrir o espaço deixado por “Tamandaré”, que teve a gravação proibida); nas curiosas implicâncias dos agentes do Estado.
— Mario Prata me contou que em “Trocando os miúdos” a censura implicou com “o livro do Neruda”. Como pode citar um poeta comunista? Chico então argumentou que a canção não teria como ser subversiva: “Ela ficou com o livro, mas nunca leu” — diverte-se Homem.
Histórias como essa (e a da carta a Vinicius, a de “Noite dos mascarados”…) podem já ter sido ouvidas por quem acompanha a trajetória de Chico. Afinal, é difícil algum detalhe de sua obra ainda manter o ineditismo depois de tantos estudos, entrevistas, especiais de TV e projetos dedicados ao compositor — apenas nos últimos anos, uma série de 12 DVDs dirigidos por Roberto de Oliveira, um documentário com o making of de “Carioca” (“Desconstrução”, de Bruno Natal) e o livro de ensaios “Chico Buarque do Brasil”. “Chico Buarque — Histórias de canções”, porém, tem o mérito de reunir o que de mais significativo se disse sobre as canções do artista. Textos e vídeos que saíram de um arquivo que Homem monta, informalmente, desde 1965, quando ouviu Chico pela primeira vez.
O garimpo rendeu curiosidades pouco lembradas, como a paródia de “Vai passar” feita para a campanha de Fernando Henrique Cardoso pelo governo de São Paulo; a revelação de que “muito jabá” foi pago para que “Construção” tocasse no rádio; e uma tradução nonsense da versão alemã para “A banda”.
O projeto do livro começaria a tomar forma apenas no fim da década de 1980, quando Homem foi convidado a reunir as letras de Chico para o songbook “Chico Buarque: Letra e música”. Quando a internet começou a crescer, Homem, que já tinha as letras de Chico digitalizadas, sugeriu ao artista a criação de seu site oficial.
— Foi no site que surgiu a ideia de, junto às letras, pôr links para histórias que eu conhecia sobre aquelas canções. Transcrições de entrevistas, artigos… — lembra o autor.
Chico não deu, portanto, novas entrevistas a Homem para o livro — há algumas histórias e comentários que o autor presenciou em sua convivência com o compositor. Mas o homenageado acha que teria pouco a acrescentar, como afirma em e-mail reproduzido na contracapa: “Vou pensar mais um pouco, procurar alguma anedota inédita, mas acho que você as conhece todas, melhor que eu”.
(…) não foi nada agradável passar pelo saguão do teatro e ouvir João de Barro, o Braguinha – autor de tantos sucessos, entre os quais a imortal letra para “Carinhoso”, de Pixinguinha -, dizer que a música era uma porcaria”
“Januária”
Numa noite de boemia, o pintor Di Cavalcanti prometeu a Chico um quadro seu. Cumpriu a promessa enviando Januária, que foi o ponto de partida para essa composição.
Quando eu organizava as canções para o livro Chico Buarque letra e música, Chico me perguntou de onde eu havia tirado o verso “logo aponta os lábios dela”, já que o correto era “logo aponta os lados dela”. Respondi que era assim mesmo que ele cantava no LP de 1968. Preocupado com o erro, pus-me a escutar o velho vinil, até que, finalmente, o ouvido viciado conseguiu entender que, de fato, era “lados”. (…) Não foi um consolo nem uma justificativa, mas me senti aliviado quando descobri que tanto Isaurinha Garcia (no álbum Chico Buarque e Noel Rosa) como Caetano Veloso (no CD Contemporâneos, de Dori Caymmi) cantam “lábios” (…).
Em 2004, na exposição comemorativa de seus 60 anos, com curadoria de seu sobrinho Zeca Buarque Ferreira, um manuscrito mostrava que num primeiro rascunho o verso era “sempre aponta a casa dela”.
“Passaredo”
Para surpresa de muitos que passaram a ver o compositor como um militante ecológico, Chico revelou durante um programa de televisão que não só não entendia de bichos como os detestava. E admitiu até um sacrilégio: deliciou-se com uma capivara assada ao som de sua composição. A vingança viria logo depois, quando, no terraço de sua casa, ouvindo “Passaredo”, um representante dos ofendidos fez cocô na sua cabeça.
“Ode aos ratos”
A cantora Mônica Salmaso contou, durante um show, que soube de fontes fidedignas a seguinte história: escrevendo a letra, Chico percebeu que lhe faltavam informações sobre as características dos ratos, e ligou para o amigo Paulo Vanzolini, compositor e zoólogo:
– Vanzolini, aqui é o Chico. Eu estou escrevendo uma letra sobre ratos e queria que você me ajudasse a saber como eles são. O nariz, como é que é? É frio? Quente? Macio? Duro? E a pelagem?
– Ô Chico! Você mente tanto sobre mulher… Porque não inventa qualquer coisa também sobre os ratos?
– Pô, Vanzolini… Pelos ratos eu tenho o maior respeito.”