Sexta feira que promete ser atarefada, mas a cultura não pode faltar no Ouro de Tolo.
Como de hábito, iniciamos com nossa coluna sobre cinema, parceria com o blog Cinecasulofilia. O texto, uma vez mais, é do amigo e cineasta Marcelo Ikeda.
Nesta véspera de feriado, um filme do maior cineasta da história de Portugal – que já ultrapassou os 100 anos de idade e continua filmando. Lição de vida.
Singularidades de uma Rapariga Loura

de Manoel de Oliveira

“Este novo filme de Manoel de Oliveira começa com um longo plano com câmera parada, mostrando um fiscal que recolhe ingressos e os confere, no vagão de um trem. Por sobre esta imagem, passam os créditos iniciais do filme. Esta imagem não deixa de ter uma relação íntima com o próprio processo cinematográfico, como se o fiscal do trem fosse o próprio fiscal do cinema, conferindo os ingressos de entrada no mesmo instante em que nos sentamos e nos preparamos para a sessão.

Nesse trem o protagonista da história viaja, e enquanto viaja, conta sua história de vida a uma passageira ao lado. Enquanto narra a história a ela, o filme se faz diante de nós, de forma que nós os espectadores somos como essa companheira de viagem do protagonista, que escuta sua história apenas do seu ponto de vista.

Esse trem (o mesmo trem dos Irmãos Lumière) é o próprio cinema, que nos leva numa viagem, enquanto a passageira observa pela janela, e ouve a história de seu companheiro de poltrona.

É através desse jogo de espelhos entre o narrar e o fazer que ‘Singularidades de uma Rapariga Loura’ se desenvolve, como um típico filme de Manoel de Oliveira. O protagonista, representado por Ricardo Trepa, neto do diretor, se apaixona por uma imagem, por trás de uma janela, que ele vê e nutre uma obsessão doentia, uma paixão mórbida, quase como um Janela Indiscreta. Novamente temos a impressão que a história se passa num lugar e num tempo estranhos, por um lado contemporâneo (as externas, as vitrines das lojas, o som dos carros), por outro, como um filme de época (os figurinos, a direção de arte e a decoração das casas, a forma impostada como as pessoas se relacionam).

Aos mais de 100 anos de idade, Manoel de Oliveira desafia o tempo e a morte em mais um filme típico de sua singular filmografia. O mistério do amor, as mulheres falsamente indefesas, as possíveis femme fatales, a decadência da aristocracia portuguesa, o princípio de uma incerteza, a improbabilidade e a inevitabilidade do amor, tema medieval e contemporâneo, um cinema antigo e atual, um enigma. Gostaria que Mestre Oliveira filmasse Capitu e seus olhos de ressaca. Um cinema econômico, falsamente simples, cristalino. As imagens escondem tanto quanto revelam, assim como o ligeiro véu por trás da cortina sob a qual a mulher da janela se esconde e se desvela. Nada sabemos sobre ela e ao mesmo tempo sabemos tudo: “isto é tudo sobre o amor”, como diria Magda para o jovem Tomek em Não Amarás, de Kieslowski.

No final, o trem continua sua viagem, sem que chegue ao destino programado. É apenas parte de uma longa viagem vida adentro.