O Imperador D. Pedro I gostava, de vez em quando, de esquecer os burburinhos da Corte e viajar para a Real Fazenda de Santa Cruz, onde costumava benzer suas amantes com o báculo episcopal. Sobre as viagens de Sua Majestade, Brasil Gerson escreveu o seguinte na História das Ruas do Rio :
D. Pedro I e sua comitiva paravam na fonte de pedra da igreja, para que seus cavalos bebessem água, enquanto ele buscava sofregamente a magnífica pinga do vendeiro que ficava defronte, famosa desde Campinho até Campo Grande.
É isso, senhores. O Imperador do Brasil era frequentador de uma tendinha na altura de Realengo, onde encostava o cotovelo no balcão, jogava conversa fora e tomava umas doses daquela que matou o guarda. Não duvido que jogasse porrinha com os populares.
Citei essa passagem prosaica da vida de D. Pedro pelo seguinte: a informalidade com que o Imperador tomava umas canas é diametralmente oposta à frescurite que grassa, nos dias de hoje e sobretudo durante o inverno, entre os bebedores e entendidos de vinho. Explico.
Já me declarei, alhures, impressionado com o verdadeiro ritual em que se transformou o simples ato de beber vinho em um restaurante. O garçom serve um mísero gole e aguarda, com cara de tacho, que o cliente experimente o tinto, avalie a qualidade da safra, verifique a harmonização com o cardápio, balance a cabeça e autorize, vinte minutos depois, que a bebida seja servida. Mas a coisa não para por aí.
A última moda dos especialistas é tecer considerações sobre a psicologia e os aspectos emocionais da bebida. Sim, é exatamente isso. Os vinhos agora são analisados com rigores freudianos. Há uma nova ciência na praça, a vinhognoseterapia.
Não bastassem aqueles cabras que ficam rodando o vinho no copo, cafungando o tinto e destacando a sutileza dos aromas e da característica das uvas, mergulhamos na era das divagações existenciais sobre o tema. O camarada toma uma taça, faz pose de quem limpa bosta de galinha com colher de prata e arrisca uma análise das características emocionais da bebida:
– É um vinho que se mostra, ao primeiro gole, um tanto tímido. Aos poucos, porém, vai ganhando um toque de agressividade que o equipara aos melhores rascantes. Honra a tradição e tem personalidade. Harmoniza bem com carnes vermelhas.
O outro, sem perder a pose, faz cara de galã do cinema mudo e manda brasa:
– O vinho padece de um acanhamento excessivo. Poderia ser um pouco mais arrojado, sem perder a sensibilidade. Acho que harmoniza com carne de vitela ao molho de queijo de búfala desmamada marajoara.
O terceiro resolve entrar de sola nos adjetivos :
– As características do mosto da uva atribuem um toque de excentricidade à bebida. É , todavia, um vinho corajoso. Eu diria que tem caráter. É isso; eis um vinho de caráter. Harmoniza bem com escama de peixe espada ao molho de tamaras flâmbadas no conhaque.
O quarto dá o tiro de misericórdia:
– Talvez falte uma certa ousadia. Mas é, sem dúvidas, um vinho que tem alma. Harmoniza com a minha própria personalidade. Esse vinho sou eu.
Mais chegado ao estilo D. Pedro I de ser, ouço essas barbaridades e pergunto aos meus botões velhos de guerra. Como pode uma bebida ser tímida, agressiva, acanhada, arrojada, sensível, excêntrica, corajosa, de caráter, ousada e possuir alma ?
Soube, dia desses, de um sujeito que entrou no consultório do analista e disse pro médico da alma :
– Eu já obtive alta da análise. Quero, na verdade, que o senhor analise essa garrafa de tinto, da safra de 1937, que eu ganhei de uns amigos.
A realidade, a acreditar nessas avaliações , é que qualquer vinho é um ser humano mais complexo do que eu. Não me surpreenderei se um dia souber que algum médium incorporou uma garrafa de vinho em um centro de mesa branca e saiu dando consultas. É o caminho natural. Só não contem comigo para bater cabeça pro caboclo.
Eu sou do tempo em que harmonizar era só ajustar a relação entre o canto e a dança nos desfiles das escolas de samba.
Abraços.
Hilário, mas um tanto equivocado. Na verdade, essas descrições do vinho em termos de personalidade são anteriores à moda atual, de buscar correspondências olfativas. Pior que um vinho “ousado” ou “tímido” é um vinho “com toques de asfalto molhado” ou “notas de toronja da Flórida bem madura”.
Acredite: há quem compre uma maleta com essências de flores, frutas, couros, etc… para depois posar de entendido.
Enfim, tudo para fazer um bom vinho ficar ainda mais caro do que já é.
Grande texto, Professor. Agora a babaquice não fica só no “quesito” vinho. No programa Mundo S/A da Globo News, o assunto é – tirem as crianças da sala- o boom do chá gourmet na capital paulista.
Abraço,
Alfredo- Manaus/Am
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É isso aí…Luiz Antonio…sabedoria pura o seu artigo… eu sempre disse, fazer curso de “sommelier” para quê? Vinho bom é aquele que agrada o meu paladar, para quê sofisticar? Se o meu paladar tem vida própria, não o tornarei ordinário, bom é aquilo que eu gosto, e não aquilo que os outros dizem que é gostoso ou distinto…rs. Muito boa a degustação a seguir, comprova fielmente o que pensamos… http://www.youtube.com/embed/hNQL_MFck2I …vou no vinho de número 10…rs…acompanho os melhores sommeliers.
é fato. mas vem cá, tem umas cachaças agressivas ;P
Luiz: gostei muito do texto, sobretudo, para alguém que acha o ato de tomar vinho um momento de prazer e, assim como uma boa cerveja gelada, compartilhar com amigos e muita conversa fiada. Abraços, Alex.
PS: Faço mestrado na USP sobre o florianismo. Gostaria de pedir uma cópia de sua dissertação,pois o acesso ao seu trabalho na UFRJ é possível. A dissertação não circula e na ocasião que fui ao Rio para tirar uma cópia do seu trabalho, os funcionários da Universidade estavam em greve. Se ele já estiver publicado, gostaria do título e da editora para que possa adquiri-lo. Meu email é alexhistoria@usp.br
Olha , quando na adolescência a gente não tinha grana para beber e passava no supermercado pra comprar cinco litros de Sangue de Boi, para beber no calçadão da Praia Vermelha, nós costumávamos ficar corajosos,com personalidade e as vezes com uma certa agressividade quando a porrada estancava, mas no final tudo se harmonizava com o churrasco de gato da barraca do Pará e chamávamos isso de lual !!!!! Passa a régua !!!!
Alex,
acho que você encontra a dissertação (O evangelho segundo os jacobinos) na Biblioteca Nacional e no IFCS. Ela não foi publicada – comecei logo depois a trabalhar com um tema totalmente diferente no projeto de doutorado – e eu mesmo só tenho uma cópia. Recebi uma proposta, faz um tempinho, para atualizar o trabalho e publicar pela editora da Fundação Getúlio Vargas, mas estava envolvido com um livro sobre sambas de enredo e não topei.
Em último caso posso ver se faço uma reprodução e te mando por SEDEX. Qualquer coisa é só me contactar por email: luizantoniosimas@hotmail.com
Abraço
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!
imaginar os 4 entendedores de vinho falando e um médium incorporando uma garrafa foi sensacional!
HAHAHAHAHAHAHA!
também nunca concordei com esse ritual para se tomar um vinho…um simples ato virou show!
que me perdoem os entendedores, mas para mim é tudo figuração e babaquice!
abraço!
muito bom!
escamas de peixe espada! eh,eh,eh
Mestre, os pratos descritos estão a altura dos enobabacas.
Gosto do vinho, da cerva e como bom cearense gosta da branquinha tambem. Adoro o ritual como que o Zé (BIGODE) me serve uma dose da mineira, sem rótulo, quando vou ao BODE.
Ele me confidenciou um dia que a “mineira” que ele me serve é na verdade de Alem Paraiba no estado do Rio.
Abraços
Jairo
CONVITE
Primeiro, eu vim ler o seu blogue.
Agora, estou lhe convidando a visitar o meu, e se possivel seguirmos juntos por eles. O meu blogue, é muito simples. Mas, leve e dinamico. palpitamos sobre quase tudo, diversificamos as idéias. mas, o que vale mesmo, é a amizade que fizermos.
Estarei grato, esperando VOCÊ, lá.
Abraços do
http://josemariacostaescreveu.blogspot.com
Jairo, Além Paraíba fica em Minas Gerais. A divisa de estados é o rio Paraíba. Então, a “mineira” que você bebeu é mineira mesmo.
Canellinha, obrigado, voce está certo. É que eu confundi Paraíba do sul(RJ) com Além Paraíba(MG), acho que estava sob o efeito dela. Veja voce que há dois anos atrás, estive em Além Paraíba com minha mulher, meu filho e minha nora que não tinha ainda isado em solo mineiro. Então falei para ela que já podia falar que já tinha indo em Minas.
Grande abraço
Jairo