Sempre defendi, para desespero de certa psicologia infantil, que o medo é um instrumento pedagógico da maior eficácia na educação de uma criança. Continuo achando a mesmíssima coisa. Um petiz sem receios é tão indomável quanto a pororoca do Amazonas; transforma-se numa espécie de Jairzinho Furacão devastando as defesas inimigas na Copa de 1970. Já tentei apavorar meu filho, por exemplo, com a história do abominável monstro das mamadeiras, que vira um gigante e torra no forno de microondas crianças que não querem dormir.

Meu repertório de temores infantis foi variado. Cresci convencido de que seria sequestrado como o menino Carlinhos; enterrado vivo feito o ator Sérgio Cardoso; morreria engasgado com uma bala soft e um dia seria alcançado pelo abraço assassino de Konga, a mulher gorila. Acreditava que todo doce vendido na porta do colégio continha drogas perigosíssimas; garrafas de Coca Cola vinham com dedos de defuntos e linhas de pipa com cerol degolavam duas crianças por dia. Ralos de piscina, evidentemente, sugavam crianças e prendiam meninos pelo pinto. A única forma de libertar as vítimas era cortando o bilau com uma tesoura.
Minha Tia Lita – fundamental na minha formação – fez de mim uma criança melhor, cultivando com carinho comovente esses temores primordiais.
Hoje constato que vivemos sob a tirania dos psicólogos e terapeutas infantis que acham que as crianças não tem que ter mais medo de coisa nenhuma. É uma lástima. Exemplifico.
Em conversas com amigos professores que trabalham no ensino fundamental, reparo que é comum entre a garotada o truque de pedir para ir ao banheiro para sair de sala de aula. O que tem de moleque que levanta o dedo para pedir pra fazer xixi e se empirulita da aula não está no gibi.
Eis porque defendo, em nome da boa educação, que haja um esforço coletivo – e aí penso em uma ação conjunta que inclua governo, imprensa, família, sociedade civil organizada e o escambau – para fomentar o boato de que em todos os banheiros de colégios existe uma loura morta, com algodões repletos de sangue nas narinas e olhos vazados, atacando crianças. Não é a primeira vez que escrevo sobre essa branquela defunta e nem será a última. A loura morta moldou em larga medida meu caráter.
Preferia mil vezes correr o risco de molhar as calças a ter que me deparar com a assobração terrível em forma de mulher. Ficava com a bexiga explodindo, mas a simples possibilidade de ser estrangulado e afogado na privada pela loura me fazia assistir a aula toda, feito um estóico. Só corria ao banheiro no recreio, quando a movimentação era bem maior e o número de vítimas potenciais diminuia meus riscos. Fui um bom aluno por causa da assombração dos mictórios.

Me permitam, nessa linha de raciocínio, um curto parágrafo de natureza política: Estou convencido de que as notícias sobre pedaços de corpos humanos em garrafas de Coca Cola fez mais pela luta antiimperialista do que toda a obra de Marx e Engels.

As crianças, nos tempos do Império, temiam o Bicho Papão, a Mula-Sem-Cabeça, o Boitatá e o Curupira. Meu avô tinha medo do homicida e tarado homossexual Febrônio Índio do Brasil, um assassino de crianças que virou o primeiro paciente do manicômio judiciário do Rio de Janeiro. Meu pai se borrava nas calças ouvindo o programa de rádio Incrível, Fantástico, Extraordinário; em que Almirante contava com voz assombrosa os casos mais escabrosos de espíritos, almas penadas e quejandos.
E hoje? O que pode impor limites aos moleques ligados na internet, com perfis em sites de relacionamentos e telefones celulares desde os seis anos de idade.
Urge, camaradas, ressuscitar as nossas mais notórias assombrações. Vamos começar a espalhar discretamente boatos em festas infantis, creches, programas de auditório e jardins de infância.
Aproxime-se das crianças, leitor, e com voz de dublador de filme de vampiro espalhe as notícias : – Você já pensou que pode ter sido sequestrado? Cuidado com os ralos de piscina. Cem pessoas por dia são enterradas vivas. Acharam  o mindinho de um defunto numa garrafa de Coca Cola. A loura do banheiro voltou a fazer vítimas do Oiapoque ao Chuí.
Nenhum programa de incentivo educacional será plenamente vitorioso sem esse detalhe crucial. A loura defunta, vestida de branco, com algodões em sangue nas narinas e olhos vazados, é tão importante quanto o bolsa-escola para fazer do Brasil o país de crianças bem educadas que sonhamos.
Abraços.

11 Replies to “LIÇÃO DE PEDAGOGIA”

  1. Lula
    Adorei seu texto!
    Estou mandando um presentinho lindo para o Benjamin tenho certeza que seu avô vai gritar feliz a Nadja fez o que eu queria fazer, Candida vai amar, não fica triste comigo mais eu estava me sentindo muito mal em pelo menos tentar enquanto ele é um menininho
    depois ele decide “FLA ou BOTA”.
    Saudades.

  2. Simas, amei o texto. Expressa justamente o que penso da atual pedagogia educacional. Como está difícil criar filhos com tantas interferências de psicólogos, pedagogos e o escambau! Estamos criando verdadeiros tiranos.
    Abs.
    Silvana

  3. Desculpe-me mas da mesma forma que muitos vão se identificar com seu texto, eu não me identifiquei mesmo… tbm cresci com as mesmas crenças limitadoras que são tão amplamente usadas desde sempre…mas nada me seria mais gratificante se meus pais me explicassem os motivos de uma situação, ao invés de criar em mim medos inexistentes para me manter em controle.. esse é um dos maiores problemas da sociedade hj, e com meu filho eu ajo da forma como eu queria ter crescido, eu não o subestimo e ele entende a responsabilidade que ele deve ter, desde agora, com suas pequenas obrigações.. isso sim prepara um homem pro futuro, e não crenças limitadoras que ensinam mais medos que o mundo ja tem.. Não se deve na minha opinião criar mais medos.. e sim explicar as várias facetas dos já existentes.. que já são demais… Ao final digo que seu texto me serviu para reforçar a minha forma de pensar a respeito deste merito… e por isso obrigado.

  4. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Ai por favor se a ironia tava implícita e eu perdi peço perdão!!! foi tão minucioso que lvei a sério mesmo!!! ^_^

  5. Muito bom!
    Hoje é engraçado, mas muitos medos nos atormentaram de verdade.
    O engraçado é que vemos hoje muitos adultos caírem em histórias parecidas… rs

  6. Quê? Era ironia??? Não, o medo impõe limites sim! Claro que não se trata de trancar criança em armário, mas alguns medos forjam o caráter. Ser humano sem medo não respeita P nenhuma!

  7. Mestre,
    Grande texto.
    Devo dizer que fui criado ouvindo estórias limitadoras,de assombrações contadas num alpendre de casa do interior do Ceará, onde a única luz era dos cigarros. Meu velho pai tambem ouvia em ondas curtas o INCRÍVEL, FANTÁSTICO E EXTRAORDINÁRIO (COM A LUZ APAGADA).
    O velho gostava das ondas curtas e ouvia escondido tambem, as rádios de Moscou e Havana transmitidas em português.
    Hoje criei a Confraria do Além a que possue muitos confrades. a última reunião foi em São Paulo e durou 7 horas em duas etapas.
    Estas limitações são boas e evitam limites dolorosos no futuro nos garotos com a cela ou a tumba.

    Abraços

    Jairo

  8. MARI, essa pedagogia do medo é coisa que eu venho escrevendo desde meu antigo blog, o Histórias do Brasil. Leia de novo o último parágrafo, pense na minha profissão e você vai entender o que eu estou chamando de ironia.

    Abraço

  9. Mestre Simas,
    A história da Confraria é simples.
    Discobri que a maioria das pessoas, familiares e amigos, gostavam de conversar sobre o assunto, apesar de pouquissimas pessoas não gostarem. A confraria tem como lema principal não buscar explicações sobre o fato contado e respeitar o conto de cada um. O objetivo é de confraternização utilizando-se do tema. alguns levam a sério outros não mas há espaço para todos visto que o respeito é observado.
    Não há programação para as reuniões que são determinadas por algum Deus,Deuses, Entidades ou Afins. Não se sabe ainda e não há a mínima vontade em saber quem determina.
    Este tipo de confraria sempre existiu, na verdade não criei nada, pois muitos são os confrades e acho que voce é um deles.

    Abraços

    Jairo

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