Chego pisando manso, já que em geral uso esse espaço para falar do cadinho que me forja, para  meter o pitaco nas discussões que envolvem o problema da ocupação dos morros cariocas.
 Sou, como quase todo historiador, de ousar diagnósticos. Honrando ainda os historiadores, meros profetas do que já aconteceu, sou péssimo na hora de sugerir a terapêutica. Faço, portanto, essas reflexões no horizonte do tempo e deconheço as soluções para os problemas apontados.
A ocupação inicial dos morros do Rio de Janeiro remonta aos fins do século XIX e início do século XX. O contexto do período – comecinho da República – é marcado por duas ideias que norteiam a atuação do poder público em relação à cidade e seus habitantes: civilizar, interferindo no espaço urbano e nos hábitos cotidianos; higienizar, através da assepsia proporcionada pela vacina e pela saga apostolar do Doutor Oswaldo Cruz.
O ato de civilizar era visto como uma tentativa de impor à cidade padrões urbanos e comportamentais similares às capitais européias, especialmente Paris. Foi essa a perspectiva da reforma urbana de 1904, projetada pelo prefeito Pereira Passos e seus asseclas – o alcaide era um declarado devoto de Haussmann, o responsável pela reforma urbana da capital francesa nos tempos de Napoleão III.
 A reorganização do espaço urbano teve, naquele contexto,  o objetivo de consolidar a inserção do Brasil no modelo capitalista internacional, facilitar a circulação de mercadorias [inviabilizada pelas características coloniais da região central, com  ruas estreitas que dificultavam a ligação com a zona portuária] e construir espaços simbólicos que afirmassem os valores de uma elite cosmopolita. Era o sonho da Belle Époque tropical.
 Havia, porém, um obstáculo a ser removido para a concretização da Cidade Maravilhosa: os pobres que habitavam as ruas centrais da cidade e moravam em habitações coletivas, como cortiços e casas de cômodos – descendentes de escravos, mestiços, imigrantes portugueses…
A solução encontrada pelo poder público foi simples e impactante – começou o “bota-abaixo”, com o sugestivo mote de propaganda O Rio civiliza-se. Resultado do furdunço: mais de setecentas habitações coletivas  demolidas em curto espaço de tempo.
Foi aberta a Avenida Central [atual Rio Branco] ; demolido o Largo de São Domingos [para a abertura da Avenida Passos]; demolidas as casas paralelas aos Arcos da Lapa e ao Morro do Senado [para abrir a passagem à Avenida Mem de Sá ]; alargadas as ruas Sete de Setembro e da Carioca; abertas as avenidas Beira Mar e Atlântica e concluído o alargamento da Rua da Vala [atual Uruguaiana]. 
A reforma resolvia uma série de problemas e contradições da cidade e gerava uma indagação: o que fazer com os homens e mulheres que os governos definiam como  “elementos das classes perigosas”, habitavam as regiões centrais e eram obstáculos à concretização da Paris tropical?
A relação das elites e do poder público com os pobres era paradoxal. Os “perigosos” maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita. Ao mesmo tempo, falamos dos trabalhadores urbanos que sustentavam – ao realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer – a viabilidade  desse mesmo sonho: operários, empregadas domésticas, seguranças, porteiros, soldados, policiais, feirantes, jornaleiros, mecânicos, coveiros, floristas, caçadores de ratos, desentupidores de bueiros…
Os habitantes dos cortiços eram necessários, dentre outras coisas,  para realizar o trabalho braçal da demolição dos cortiços.
Essa população pobre, ao mesmo tempo repelida e necessária, tinha duas opções – morar nos subúrbios ou ocupar os morros centrais. A vantagem da ocupação dos morros, evidente para os dois lados, era a maior proximidade dos locais de trabalho. Combinamos assim: não tão perto que possam macular a cidade restaurada e higienizada, não tão longe que obriguem a madame a realizar os serviços domésticos que, poucas décadas antes, eram tarefas das mucamas de Sinhá.
A ocupação dos morros retrata, então, as contradições de uma cidade que se pretende moderna e cosmopolita e é, ao mesmo tempo, marcada pelo esteio ideológico de trezentos anos de trabalho escravo. Os séculos de cativeiro e chibata geraram, pelas bandas de cá,  uma brutal desvalorização dos serviços manuais e dos seus praticantes – os desprovidos de humanidade; detentores, porém, da força de trabalho.
Desde então, e ao longo das décadas, praticamente todos os debates sobre o problema das favelas resvala em duas posições antagônicas, perigosas, inflexíveis e inibidoras do debate sobre as contradições apontadas: a  romantização permissiva da vida nos morros, como se tudo estivesse muito bem visto assim do alto,  ou – o que é pior –  a criminalização brutal e preconceituosa do conjunto de seus habitantes. 
A verdade é que pensamos, ao longo dos anos, os morros e as favelas como corpos separados da urbe civilizada. As propostas de remoção – termo, como bem lembrou o historiador e antropólogo Marcos Alvito, só utilizado quando se fala de  favela, lixo e cadáver – esbarram no velho dilema do início do século XX  e nunca foram acompanhadas de uma intervenção séria e contundente do poder público no transporte de massa, de resto o beabá de qualquer urbanidade decente.
Tem muita gente que deseja que o pobre more longe, muito longe – e reveste esse bolo, para conforto de sua boa consciência cristã conservadora, com a confeitaria de que temos que afastar os coitados de áreas de risco.
O outro lado, o discurso permissivo do vale tudo urbano, também não ajuda e resvala na perigosa romantização do que é precário – uma mistura de filosofia de esquerda de grêmio estudantil e livros da série Poliana, a moça.
A solução? Não sei. Reafirmo o que escrevi no início desse arrazoado: ouso o diagnóstico, desconheço a terapia. 
Me assomba, porém, a impressão de que  não conseguimos, ainda, responder a velha questão dos tempos do Seu Pereira, marco do padrão civilizatório da cidade cosmopolita e da visão de mundo de considerável parcela da população bem alimentada do Rio:
– Quem, afinal, preparará, na manhã do dia do juízo, na hora do pega pra capar, o café da manhã da madame?
ps: Toda vez que esse papo de remoção surge, para criar anticorpos contra a confeitaria dos bem pensantes, costumo escutar esse sambaço-aço-aço da Em Cima da Hora, de 1984:

9 Replies to “A OCUPAÇÃO DOS MORROS – O LADO B DO DISCO”

  1. Mestre,
    Esse texto foi ótimo, muito bem pensado e elaborado. Gostei especialmente da conclusão. Não esperaria nada abaixo disso do grande Simas; tenho muito orgulho de ter sido sua aluna no conturbado ano de 2009.
    Dentro de alguns meses estarei no pH pra pedir dinheiro toda pintada e conversar com você. Começarei a estudar Direito na UERJ no segundo semestre de 2010. Obrigada por tudo, professor.
    Sua pupila, Isabela =)

  2. Exatamente.Esses dias falei na sua aula que não sabia nada sobre a história do Haiti,e fui olhada como um ET.Só que honestamente,do mesmo jeito que nós alunos não sabemos profundamente a história de lugares com o Haiti,também não sabemos a da nossa cidade.Só que essa é vergonhosa.
    Parabéns pelo texto (:
    adoro as suas aulas.To te seguindo professor.Doi beijos

  3. Mestre,

    Isto não é um arrazoado. É uma aula que pelo visto, nacessária desde os tempos do Seu Pereira e principalmente agora. Visto que as soluções apresentados pelos atuais senhores pereiras, seguem os mesmos passos.
    Muito bom

    Jairo Costa

  4. Mestre, pode apagar, depois, este comentário, é que não sei seu e-mail para fazer contato.
    O samba da Em cima da Hora é lindo. Está citado no seu livro? Estou partindo em uma viagem de ajuda humanitária e comprei seu livro para compor minha biblioteca de bordo, já que terei que aguentar um total de 30 dias no navio. Haja leitura! Faço questão de esbarrar com você num boteco desses qualquer dia para autografá-lo, quando voltar! Sou seu fã!
    Grande abraço,
    Marcos Hilton – marcoshilton@hotmail.com

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