O sujeito sente que está prestes a dobrar o cabo da Boa Esperança quando um adolescente fala algo do tipo  vi Malhação ontem e a pergunta que  ocorre é: – Quem foi o Judas? É o meu caso. Fui criança em um tempo em que malhação não era levantar peso em acadêmia ou novela debilóide de televisão. Era, tão somente,  enfiar a porrada, no sábado de Aleluia, em um boneco representando o  Iscariotes.

Passava as semanas santas da minha infância em Nova Iguaçu. Sábado de Aleluia, para mim, vinha sempre com  a expectativa da malhação do Judas e da reabertura do terreiro de encantaria da minha avó. A casa tocava para Oxóssi e os caboclos no dia de São Sebastião – 20 de janeiro – e só reabria os trabalhos com  a oferenda a Exu e o toque de levantar a Aleluia. Coisas do sincretismo fabuloso das crenças do Brasil.

O Judas, um boneco feito de saco de estopa e recheado de serragem,  era devidamente enforcado em um poste; ao meio dia  a criançada começava a enfiar o cacete no dito cujo. Fogos explodiam. No dia anterior a grande expectativa era quanto a escolha do personagem que seria o traídor daquele ano – o técnico da seleção brasileira, o prefeito, o governador, o presidente, o vilão da novela… Malhar o Iscariotes era uma verdadeira catarse coletiva.
A brincadeira de sentar o cacete no Judas, para recordar a morte do cabra, chegou ao Brasil com os portugueses. Há várias versões sobre a origem do furdunço com um boneco. Alguns estudiosos afirmam que a origem da malhação se remete aos ritos em que a Inquisição Católica queimava, em praça pública, bonecos representando os hereges que conseguiam escapar das garras do Santo Ofício. Hoje em dia, no desencantamento da vida nas grandes cidades, o balacobaco de malhar o traídor está mais devagar que o metrô carioca.
Em 1821, vejam só, Dom João VI proibiu a malhação do Judas nas ruas do Rio de Janeiro. No ano anterior a população – zombeteira como ela só – havia descido a porrada em um Iscariotes balofo, representando o próprio rei e os demais administradores portugueses que viviam no Rio. A proibição não adiantou xongas. Judas foram malhados nas ruas da cidade e o cacete comeu entre os populares e a polícia.

Acho que o Judas que mais malhei na minha vida foi Ramón Quiroga. Aos esquecidos: Quiroga foi o goleiro da seleção peruana no jogo Argentina 6 X 0 Peru, durante a Copa do Mundo de 1978. A Argentina precisava de uma diferença de quatro gols para se classificar para a finalíssima, eliminando o escrete brasileiro. Quiroga – que era argentino naturalizado peruano – teve uma atuação ridícula. Tomou uns frangos bíblicos e bye bye Brasil. Foi, por causa disso, devidamente malhado na Aleluia de 1979. Entrou no cacete.

Hoje é dia, portanto, de enfiar o pau no Judas. Aqui no Rio é forte candidato ao cargo de traídor do ano o deputado Ibsen Pinheiro, da emenda do petróleo. Não me entusiasma e tem tudo para ser um Judas mixuruca. O ex-governador Arruda, curtindo uma cana, também não me apetece. O ideal é que cada um, democraticamente, tenha o sacrossanto direito de enforcar seus próprios demônios e algozes, zerar a raiva e curtir, pacífico feito um bem te vi, uma boa Páscoa.

É o que desejo.

3 Replies to “CACETE NO ISCARIOTES”

  1. Simas, eu que já avisto a curva do cabo da Boa Esperança, entendo perfeitamente o seu sentir.

    Quando criança, eu e meus irmãos esperávamos ansiosos pela malhação do Judas. Era uma espécie de ritual. Um ano, meu pai foi o Judas da vez. Ele era síndico do prédio, e, sabe como é, síndico é uma figura antipatizada, sempre. Acho que ele ficou um pouco triste, pelo que me recordo, mas soube entender a brincadeira.

  2. Simas, aqui na zona norte do Rio não basta só escolher um Judas, tem também a lista com os maiores fofoqueiros do ano e suas principais calunias soltadas ao ar….

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