Como trabalho em Niterói, vejo praticamente todo dia a estátua do cacique Arariboia – olhar enfezado e braços cruzados – mirando o Rio e Janeiro com cara de poucos amigos. O cacique, como se sabe, era o chefe da nação Temiminó – que saía na porrada com grande constância contra os tupinambás que viviam do outro lado da Baía da Guanabara.
É ótimo conhecer um pouco da história das pancadarias entre Temiminós e Tupinambás para romper de vez com a visão romântica, e historicamente equivocada, do índio brasileiro como um homem pacífico, integrado à natureza, respeitando a mata, os rios e os animais. Uma ova.
Índio saía no cacete com índio o tempo todo, numa espécie de FlaXFlu de tempos imemoriais. Um goytacá se sentia tão distante de um tupiniquim como de um japonês e um temiminó se achava tão diferente de um cariri como de um viking escandinavo – na mesma proporção de como eu me acho de uma nação diferente dos fãs da  dupla Zezé di Camargo e Luciano e dos torcedores do São Paulo Futebol Clube.
Os nossos primeiros habitantes também eram chegados a tacar fogo em mato e floresta para facilitar a coivara e  caçar a bicharada que se desentocava em desespero para fugir das chamas. Warren Dean, em seu estudo monumental sobre a Mata Atlântica [A ferro e fogo], mostra que o papel dos nativos na devastação foi maior do que supõe nossa vã filosofia.
Gosto de descrever em sala de aula esse perfil nada romântico do nativo brasileiro – uma espécie de anti- Pery. É o caso daquela velha indagação. Os bandeirantes atacavam índios para escravizá-los. E quem eram, majoritariamente, os bandeirantes? Eram índios e descendentes de índios. Domingos Jorge Velho, o filho de índia que atacou o quilombo dos Palmares, sequer falava português.
Mesmo espanto causa a simples menção ao fato de que no Quilombo dos Palmares vigorou em escala significativa o trabalho escravo e a constatação de que há inúmeros exemplos de escravos que, ao juntar uns caraminguás como negros de ganho, adquiriam escravos. O Brasil, de fato, não é para principiantes – tivemos escravos que foram donos de escravos. É mole? , como diria meu ex-professor no IFCS, Manolo Florentino.
Mas voltemos aos índios. Eu, particularmente, sou fã dos Goytacá. Não queriam contato com ninguém, detestavam qualquer um que não fosse da tribo e, como se não bastasse, eram nadadores monumentais e pescavam tubarões em Atafona, onde o Rio Paraíba encontra o mar, na base da porrada, com um simples pedaço de madeira para travar a boca da fera.
Defendo, também, que a prefeitura do Rio de Janeiro erga na Praça XV, de frente para Niterói, uma estátua de vinte e tantos metros do chefe Cunhambebe; terrível canibal, líder tupinambá e inimigo de morte dos temiminós. Colocar um monumento a Cunhambebe de frente para o monumento a Arariboia – separados apenas pelas águas da Guanabara – seria a maior das homenagens aos guerreiros dos dois lados; homens valentes, contraditórios e muito distantes desses índios bundões e ecologistas precoces que os livros didáticos teimam em divulgar.
O olhar furioso de Arariboia merece encontrar o olhar furioso de Cunhambebe. Se assim fosse, e se estátuas se movimentassem, garanto que um discreto sorriso de satisfação brotaria das bocas dos dois grandes chefes.
Abraços. 

14 Replies to “ARARIBOIA MERECE SER ENCARADO”

  1. Lula
    Como é bom aprender HISTÓRIAS do nosso BRASIL, com certeza vou imprimir e salvar para meus netos tomarem conhecimento. Lindo, muito lindo saber coisas que os livros não relatam. Beijos Tia Nadja

  2. Fala Mestre!
    Excelente idéia! Como sugestão adicional, após a construção da merecida estátua, poderiam mudar também o nome da linha de ônibus “Barcas – Praça XV” para “Araribóia – Cunhambebe”.
    Por falar nisso, já estava para te perguntar há um tempo se você já ouviu falar de um livro chamado “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil” e sua opinião sobre ele, caso tenha lido.
    Um fraterno abraço!

  3. Professor Simas,

    pois, hoje à noite, eu vou justamente numa sessão desse caboclo, Seu Arariboia, aqui em Salvador.

    Quando fui da primeira vez, em novembro do ano passado, fiquei muito impressionada com as coisas que ele me disse, e constatei que ele é, mesmo, um caboclo danado de vivo, verdadeiro…

    Abraços.

    Maria Clara.

  4. Belo texto. Ótima idéia para leitura.

    Realmente, o Brasil não é mesmo para principiantes.

    Um abraço

    Raphael

    obs.: não posso deixar de lembrar do Império:

    ” Araribóia loteou Niterói
    E fez do índio seu office-boy “

  5. Valeu, NADJA. Beijo!

    FELIPE, ótima sugestão, a da linha do onibus.Excelente! Vou te confessar uma coisa: Não sou muito chegado nesses guias disso e daquilo, não.O melhor é beber na fonte.O único guia que me atraí é o velho Guia Rex. Abração.

    CLAIRE, salve Seu Arariboia! Será que é o espírito do velho Temiminó?
    Saravá.

    RAPHAEL, boa lembrança. Foi, malandro é!

  6. Pois é, Simas, os meus heróis eram os guaicurus, lá do Sul. A porradaria entre eles e os bandeirantes comeu feio e, de quebra, aqueles índios eram ginetes esplêndidos (proto-gaúchos?).
    Estes textos seus deixam-me saudoso de meu pai, professor de História e grande contador de histórias e “causos”, brasileiro até a medula!

  7. Dessa eu não sabia… Índio matando tubarão na cacetada é sensacional. Pena que esse mesmo silvícola (olha aí, primeira vez que uso essa palavra) foi impregnado pelo estigma de “pouco esforçado”. Vai entender! O camarada pra pescar tubarão no porrete tem que se esforçar um bocado! Pra trabalhar pra português esperto é que eu também não faria muito esforço…

    Abração!

  8. Saravá, meu velho! E pensar que foi um literato escravocrata, o senhor José de alencar, um dos que mais contribuíram para essa visão romântica do Índio nas cidades…

    Mas isso é coisa de metrópole. No campo, na roça, a visão não é bem essa não, e graças a Tupã. Lá na roça, bem perto das aldeias que restaram, o buraco é mais embaixo.

    Beijo, meu velho!

  9. Acho que nem tanto assim nem tanto assado…

    A pancadaria comia sim mas regulada por velhos costumes… sem querer exagerar, com um pouco mais de ética e noção do que os FlaxFlu. Acho que na sua necessidade de iconoclastear a história do índio cê pucha um pouco demais pro lado de lá.

    Digo isso porque sou fã do seu blog.

    Longe de mim promover a idéia do bom selvagem, mas na do mal selvagem eu tb não caio.

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