O fato é que fomos ao maior do mundo assistir a um Brasil e Uruguai. (Recorro ao livro do mestre Ivan Sotter – Enciclopédia da Seleção – , obra seminal sobre o escrete canarinho, para descobrir que o prélio valia pela Taça Atlântico e foi disputado no dia 28 de abril de 1976.) Não me lembro de absolutamente nada da partida, mas tenho vivas recordações de um arranca-rabo que começou após o juiz encerrar a disputa. Em meio a uma profusão de socos e pontapés, o lateral uruguaio Ramirez partiu em direção a Rivelino, com fúria assassina poucas vezes vista nos gramados. Rivelino deu um pique de velocista para escapar de Ramirez, um negão de quase dois metros de altura. Ao tentar escapar do algoz, o bigode estatelou-se nas escadas que levavam ao vestiário.
Falo do Rivelino para constatar que, desde então, tenho profundíssimo respeito e solidariedade pelos homens que se esborracham em situações inusitadas. Não sou versado nas escrituras, mas chego a acreditar que, no sermão da montanha, o Nazareno tenha dito qualquer coisa como bem aventurados os que tomam um estabaco, porque deles será o Reino dos Céus.
Meu amigo Chico Novello, por exemplo, nos tempos de faculdade caía mais que a tarde feito um viaduto. Novello tomava, em média, cerca de quatro tombos por dia; todos eles de proporções bíblicas. O problema é que a frequência de quedas do cabra acabou desmoralizando o próprio ato de cair. O Chico em pé é que era a cena inusitada.
Eu mesmo tomei pelo menos dois tombos para entrar nos anais. Um deles foi em pleno Centro da cidade, quando corria para pegar um ônibus. Ao partir em direção ao coletivo, não atentei para um hidrante que estava na calçada; o choque resultou numa queda de cinema. Preferia estar pelado. O outro tombo aconteceu na Ilha do Fundão, onde caí dentro de um buraco e fui resgatado por valorosos e solidários camaradas que assistiram a cena.
Lembro-me de um colega de colégio, o Lambreta, que caiu durante uma manobra arriscada que fez no Museu Imperial, em Petrópolis, ao surfar em pantufas, durante um passeio da escola. O tombo colocou em risco o patrimônio da instituição, já que o biltre quase parou dentro do berço que pertenceu à Duquesa de Goiás, filha de D. Pedro I com a Marquesa de Santos. Não bastasse a humilhação do tombo diante das meninas da turma, Lambreta tomou um esporro da tia Sueli e uma ameaça de advertência na carteirinha.
Dia desses testemunhei uma queda fabulosa do Eduardo Goldenberg. Edu estatelou-se na Rio Branco, num sábado pela manhã, ao tentar atravessar a avenida deserta. Uma senhora queda, precisa, clássica, com estilo. Assistir ao Edu, leve como uma pluma, esborrachar-se na Rio Branco como um Dumbo que experimenta o fracasso do vôo, despertou em mim a verdadeira indagação desse arrazoado. Vejam se não é pertinente a dúvida que passo a expor.
Não sei, confesso que não sei, se o tombo é pior para quem cai ou para quem assiste. Serei mais claro. O sujeito que sofre a queda não tem o que fazer; basta erguer-se, desnudo, fragilizado, despido da máscara, e prosseguir a jornada – com a certeza de que algo na vida não será mais igual. ( Nunca mais será igual. O primeiro tombo tem a mesma importância para a formação do caráter que o primeiro porre, a primeira punheta, o primeiro gol, a primeira mamada num peitinho púbere e a primeira audição de um choro do Pixinguinha, de um samba do Noel ou de um baião do Gonzaga. )
Mas, digam-me lá, e a testemunha do esborracho; o que deve fazer? Socorrer a vítima, chorar, ter uma crise de riso, se jogar no chão em solidariedade, chamar a ambulância ou fazer a mais cretina das perguntas – Machucou? .
Minha opinião é simples. Acho que a postura correta nesses casos é fingir que não viu a queda acontecer. O sonho de todo sujeito que se esborracha é não ser visto. O comportamento mais humano nesses casos é observar o camarada estatelado e continuar agindo como se nada tivesse acontecido.
Enfim, a questão é momentosa e exige indagações mais aprofundadas que não se adequam a este espaço modesto. Por hora, abro a primeira gelada do dia, às margens do Rio Maracanã, a todos os homens e mulheres, anônimos ou famosos, que experimentamos a sensação da queda. Despidos, ridículos, quebrados, ralados e expostos, somos, afinal, os rivelinos que sabem que não adianta tergiversar – quando menos esperamos, um tombo redentor nos restitui ao legítimo papel que nos cabe nesse drama.
Até o próximo estabaco.
Sensacional o texto!
Já tomei um estabaco enquanto discutia, ou melhor, dava um esporro em alguém. Diante da situação, não aguentei e tive uma crise de riso ainda enquanto me levantava. E cadê a moral para dar um esporro nessas horas?
Não há.
Beijo!
Caro Simas. Maravilhoso o texto. A propósito, quero declarar com toda a sinceridade que tenho a maior compaixão do mundo por quem se estabaca. Faço (e sempre fiz) exatamente o que você sugere: finjo que não vi. Tenho certeza de que é isso que o sujeito quer. Abraços.
Esse texto é uma obra prima. Você devia escrever um livro sobre essa e outras reflexôes cotidianas!
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