Sim, meus caros, eu estou nessa foto. Sou o maiorzinho. Apareço, cabeleira a Bufalo Bill, batendo palmas ao lado de Dona Mundica, do meu irmão Alexandre, tocando tambor, e do meu irmão Antônio Claudio, que acabara de fazer seu amaci de consagração aos orixás e encantados.
O flagrante foi registrado no terreiro de Xambá que era comandado pela minha avó, no Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu.
Quando revi, recentemente, essa foto, pensei em escrever alguma coisa sobre a Dona Mundica e os encantados. Desisti por enquanto. Outro detalhe chamou mais a minha atenção e me levou de volta aos oito anos de idade: Calço em plena macumba o imortal Kichute, tênis utilizado por dez entre dez garotos da minha geração.
Era um tempo em que a peçonha consumista não fazia com que a molecada sonhasse, como hoje, com marcas de grife desde o berço. Não havia tênis capaz de ofuscar o Kichute velho de guerra – de preferência amarrado na canela, pra dar mais segurança. Era calçado de cabra macho, feito de lona, pretíssimo e com travas de borracha.
Eu usava o Kichute pra tudo: Ir ao colégio, jogar futebol, andar de velotrol, pular carniça, consultar o pediatra, tentar soltar pipa [só tentar, porque não tinha talento pros papagaios voadores] e, como a foto comprova, botar minha roupa branca de pequeno Ogã e bater tambor no terreiro da Deda. Era, enfim, o meu Kichute, o popular pau pra toda obra.
Ele, o meu tênis querido, acompanhou a experiência mais marcante da minha vida, daquelas que eu só pensava revelar ao médium de mesa branca depois de morto: Calçava Kichute quando assisti, impressionadíssimo a transformação de uma moça em Konga, a mulher gorila, no Tivoli Parque e fiquei de pau duro.
De Kichute , também, fui a primeira vez ao Maracanã, pra assistir a um Vasco e Fluminense com o meu pai. Descobri, naquela tarde de domingo, que o meu paraíso não precisava de anjos tocando harpa, bastavam as traves e a bola correndo.
O Kichute era excelente também para andar de velotrol e subir rapidamente no trepa-trepa. Só não funcionava, pelo menos pra mim, na hora de brincar de pique-bandeira, coisa que eu fazia invariavelmente descalço.
Essas lembranças todas me levam a uma reflexão melancólica: De repente o Kichute desapareceu das sapatarias. Por que?
Acho que o Kichute foi uma vítima da ditadura da moda e da entrada dos tênis de grife no Brasil, lá pelo meio dos tenebrosos anos oitenta. A garotada com condições razoáveis de vida nos dias de hoje não concebe botar um calçado dessa envergadura nos pés, nem debaixo de pancada.
Desconfio mesmo que o pai que der ao filho um Kichute de Natal corre o risco de ter a vida transformada em um inferno – tarefa que crianças, bandidos, grandes empresários e mulheres abandonadas sabem cumprir como ninguém. O papo agora é escolher entre adidas, nike, puma, rebook e quejandos. Cada tênis afrescalhado desses não sai por menos de cento e cinquenta merréis.
Mas o pior vem agora. Ao tentar descobrir alguma coisa sobre o destino do Kichute, para fechar essas recordações, soube, horrorizado, que o calçado continua sendo produzido. A internet me informa, e daí o meu horror, o seguinte:
Com a entrada de modelos importados de tênis, suas vendas despencaram, mas o Kichute nunca deixou de ser produzido. Atualmente, devido ao revival dos anos 7o e 80 na moda, muitos estilistas famosos estão utilizando o Kichute em suas coleções. O calçado agora é usado por artistas, a geração clubber, os descolados e alternativos.
É mole? O Kichute velho de guerra, que estava para minha geração como as alpercatas de couro para os cangaceiros de Lampião, virou coisa de viados e fanchonas.
Estamos mesmo mais perdidos do que bala no Velho Oeste. Entre as marcas globalizadas e a tal de geração clubber, precisavam matar o meu tênis preferido na infância duas vezes?
Abraços
Lindo texto!Lembranças memoráveis, eu também sou do tempo do kichute!
A propósito, aproveito para desejar a você e Candinha um lindo Ano Novo, um 2010 com muita saúde e muitos encontros!
Beijos saudosos!
Velho: viados e fanchonas estão acabando com o mundo.
Rapaz, bela lembrança. Eu não usava kichute, e só via algumas meninas com ele pouco além da aula de educação física. Que me lembre, meninas usavam mesmo era o conga branco, preto ou azul (anos depois apareceu o vermelhinho); existia também o bamba monobloco (mesmo leque colorido). Mas meu xodó era um tamanquinho, de madeira, com uma boneca pintadinha no couro da frente, perto da abotoadura de metal. Lindo. Por causa dele e da minha pisada ganhei meu primeiro apelido. Mais uma alegria, velho Simas. Beijo e obrigada.
Não peguei a moda do kichute (na minha infância eu usava um All Star, que era, assim como seu kichute, pau pra toda obra), mas sempre achei que esse negócio de revival na moda só serve pra uma coisa: avacalhar com os clássicos!
Beijo!
Obs: O que seria essa tal “geração clubber”, meu Deus?
Simas, mas um belo texto.
Eu também usava, bom tênis.
Para jogar bola então, o melhor.
abraço
MARI, valeu! E que o primeiro encontro seja já em janeiro. Beijo.
EDU, tá feia a coisa.
MONICA, o conga e o bamba foram clássicos mesmo. Gostava do conga azul e do bamba branco. Beijo.
JULIANA, não faço a mais vaga ideia do que seja a geração clubber. Vou pesquisar. Beijo!
RODRIGO, de acordo. Abraço.
Querido, desconfio que o Edu, no segundo comentário de cima para baixo, respondeu a pergunta da Juliana Medeiros sobre o que seria essa tal de geração clubber. Beijo!
E antes de me acusem de homofobia – discursinho fácil dessa patuléia que faz da defesa da tolerância um modo de vida – digo: nada contra homossexuais. TUDO contra viados e fanchonas – e tenho certeza de que me faço entender. Beijo, mano.
EDU, perfeito. É também, rigorosamente, a minha opinião.E passa, diga-se, muito distante da opção sexual.
Beijo.
Simas, também usei MUITO kichute, eu que fui criança no fim dos 70 e começo dos 80. Insubstituível!
Estão acabando é com tudo que vale a pena, sabe…
Belo texto, grande abraço.
Usei muito Kichute, mas de repente ele foi sumindo – peguei a época final dele. O Kichute era um tênis imitando chuteira – sendo assim não era um tênis, ora. Era chuteira para a pirralhada. Lembro-me perfeitamente de uma propaganda do Kichute que o Zico estrelava; o reclame (essa é velha, não?) terminava com o Galinho dando uma bicicleta.
Depois do Kichute vieram os chinesinhos. Estes também desempenhavam seu papel com extremo valor (eu estourava um a cada 15 dias), mas sem o brilho do velho e bom Kichute.
Não é mais necessário pesquisar. Desconfio que o Eduardo Goldenberg deu, de fato, a melhor resposta para a nossa dúvida.
Kichute era demais. Permitia a garotada sem grana ter um tênis decente, que servia pra tudo, como disse o Simas. Sem contar que dava um chulé único, diferente de todos os outros.
Uma companheira do kichute era a bola Campeão vocês lembram? Uma bola de tamanho oficial, mas feita de um material diferente, uma espécie de plástico. Era sem câmera e dura como uma bola de boliche. A rapaziada curtia porque era barata demais. Além disso possbilitava jogar no asfalto, coisa que acabava com as bolas de couro. A bola campeão era o terror dos goleiros: uma bolada daquela no saco equivalia a uma vasectomia precoce.
Seu casamento com o kichute era perfeito, já que com uma bola Campeão não se podia jogar descalço.
Natal ideal de um muleque do meu tempo era ganhar um kichute do padrinho e uma bola Campeão do pai.
Falou tudo Julio…..
Chulé unico é impagavel….
Outra coisa eu sempre compro na loja de fabrica da alpargatas, e modificaram muito o kichute, parece mais um all star piorado…uma pena.
Putz, ri demais com esse texto…
O kichute faz parte de minha vida, também. Sou capaz de lembrar o cheiro do kichute quando era novo… Tive vários! Eu exigia logo um novo aos meus pais quando ele começava a ficar acinzentado, com as travas desgastadas e com o cadarço arrebentado, devido à tensão a que era submetido ao amarrar-se na canela tal como um garrote, chegando quase a causar gangrenas nos pés da gurizada. Ah, nostalgia…
Um abraço, Simas!
onde fica a fabrica da kichut ?