Nesta quarta feira a coluna Tou melanje ankò, do antropólogo José Renato Baptista, a partir de episódio ocorrido em sua passagem no Haiti discorre sobre o amor dos locais pela Seleção Brasileira e compara com seu próprio desinteresse pela “Canarinho”

O Combinado Amarelo da CBF e o fim da Seleção Brasileira

Nelson Rodrigues afirmou, lá pelos idos dos anos 50, que “a seleção é a pátria de chuteiras”. Talvez fosse naquela época. Talvez seja ainda, para quem acredita em pátria. Como sugere Caetano, eu prefiro “mátria” ou “frátria”.

O fato é que já tem um tempo que venho verificando um crescente desinteresse com aquele combinado formado em sua maioria por jogadores nascidos no Brasil, formado pela CBF, que joga com o uniforme amarelo que parece um pouco com aquele da “Seleção Canarinho”. É claro que devem existir dezenas de explicações diferentes para tal desinteresse. Eu não pretendo listá-las ou investigar este assunto.

Há, de fato, um desencanto, que vem desde a estranha final da Copa de 98, quando a melhor das teorias conspiratórias foi elaborada: o Brasil entregaria aquela copa para a dona da casa, França, e teria ganhado o direito de vencer a Copa de 2002 e de sediar a Copa de 2014. Houve jogador dizendo que não podia contar o que aconteceu, CPI para investigar este fato. Um monte de bobagens.

Mas depois de 2002, especialmente quando na Copa de 2006, a seleção brasileira viveu seu momento de “pop star”, e foi derrotada de maneira acachapante pela mesma frança de 1998 – mesma porque foi o mesmo Zidane quem colocou nosso time fora de forma e desinteressado no bolso, no mais belo canto de cisne de um jogador.

Acho maravilhosa a imagem de Zidane deixando o campo expulso na final daquela Copa. Trágica e agonística, como a vida. É forçoso dizer que, mesmo tendo Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho naquela mesma época, Zidane disputou palmo a palmo o lugar de grande gênio daquela geração.

Acho que a última vez em que torci pela seleção brasileira, com algum interesse, foi na copa de 2002. Em 2006, acusei o golpe da decepção. No entanto, quando cheguei ao Haiti no fim daquele ano, a seleção brasileira era a imagem mais conhecida do Brasil. Os haitianos não falavam do Brasil da missão da ONU, das tropas ocupando o país, especialmente a sua capital. A maioria deles falava de Ronaldô, Ronaldinhô, Kaká, Rivaldô.

A seleção havia ido ao país em 2005 e feito um jogo beneficente no Estádio Silvio Cator, no centro de Porto Príncipe (foto). Ali, naquele local, próximo do grande cemitério da cidade e do Portail Leogane, a saída da cidade para a região sul do país, onde fica a estação dos ônibus, vans e tap taps para Les Cayes, Jéremie, Jacmel, Leogane, foi ali que a seleção brasileira com estes jogadores conquistou de modo definitivo o coração do povo haitiano.

É bem verdade que concorremos no coração haitiano com os argentinos, nossos eternos rivais continentais. Lá, no entanto, a rivalidade chega a tal paroxismo, que há conflitos violentos nos bairros populares de Cité Soleil, e da capital Porto Príncipe, especialmente em Bel Air, onde “brasileiros” e “argentinos” se enfrentam, em confrontos que podem, inclusive, causar mortes. Porém, apesar da concorrência, até 2009 ainda éramos os preferidos dos haitianos.

De certo modo, naquele país as pessoas são apaixonadas por futebol. Os jogos da Champions League chegam a eles com bastante frequência, apesar dos poucos aparelhos de televisão e do déficit de energia elétrica no país.

Em média, na capital do país, são de seis a oito horas de corrente elétrica por dia e boa parte das casas não dispõe de instalações elétricas. Nas casas mais ricas a eletricidade é garantida pelos geradores ou pelos inversores. O inversor é um conjunto de baterias automotivas que acumula energia nos períodos em que esta é fornecida através da rede pública, funcionando como uma espécie de “pilha” da casa.

Tive oportunidade de assistir um dos jogos da Copa Libertadores de 2008 no Haiti, o jogo entre Fluminense e Boca Juniors, no Maracanã, vencido pelo Fluminense – devo confessar que torci contra o Flu, claro. Fato, aliás, que causou espanto entre os haitianos que estavam comigo, porque não compreendiam que eu, brasileiro, torcesse por um time argentino. Coisas de carioca. Rivalidades que às vezes ficam difíceis de explicar para um estrangeiro. Afinal, no futebol não temos a “pátria de chuteiras” em campo.

Aliás, escaldado pela derrota de 2006, não acompanhei com grande atenção a seleção brasileira em sua preparação para a copa de 2010, vi jogar poucas vezes, particularmente porque não gostava de Dunga. Nunca gostei nem como jogador, tampouco como técnico de futebol. Mas de fato, a seleção ia bem sob seu comando. Ganhara a Copa América em 2007, tinha relativa tranquilidade nas eliminatórias e ia para a Copa das Confederações numa posição confortável de franco atirador – a Itália fora a campeã em 2006 e começava a despontar a Espanha. Os demais adversários não chegavam a assustar. Acabei acompanhando pouco aos jogos. O Brasil chegava à final para enfrentar os EUA.

Em junho de 2009, eu morava em Pétion Ville, no Centro Cultural Brasil Haiti. Um dos bons amigos que fizera no Haiti, desde a minha primeira viagem, foi o livreiro Polo Dubois, dono da Librairie Pleiade, a mais importante de Porto Príncipe. Apaixonado pela música brasileira e pelo Brasil, que nunca conhecera de perto – conhecia bem o Caribe (Cuba, Jamaica, Martinica, Guadalupe), o México, os EUA e a França, porém, nunca tivera oportunidade de vir ao Brasil.

Aliás, de outro haitiano, o intelectual Laennec Hurbon, ouvira que a paixão pelo Brasil e seu futebol era antiga, particularmente porque ele, durante seu doutorado em Paris, vira a seleção de 1970, e se encantara com o fato de um homem, negro, Pelé, ser tratado como o “Rei do Futebol”. Para um país marcado historicamente pelos estigmas raciais como o Haiti, vivendo uma violenta ditadura, aquilo era um símbolo de que os negros estavam vencendo e superando barreiras em outros lugares do mundo.

Polo me convidou para assistir a final da Copa das Confederações em sua casa, onde seria servido um almoço e beberíamos. A casa ainda tinha um piano, que infelizmente naquele dia não havia quem tocasse. O que me espantou, no entanto, foi a intensa movimentação pelas ruas, antes do jogo.

Quando estava indo para a sua casa, vi pessoas passando em carros com bandeiras do Brasil, motocicletas buzinando e pessoas com a camisa da seleção brasileira, num entusiasmo que só vira por aqui no Brasil em tempos de copa do mundo. E estava em Porto Príncipe, capital do Haiti. E nem era uma competição que nós estivéssemos dando tanta importância assim. Sim, eu estava no Haiti, e por conta de um simples jogo da seleção brasileira, ao qual não daríamos tanta importância, a população daquela cidade estava em polvorosa.

A vitória brasileira deixou animadas as pessoas naquele dia. Foi surpreendente – e diria comovente, ver a paixão daquelas pessoas pelo futebol brasileiro. Havia no time dos EUA um haitiano naturalizado, do qual não recordo o nome, mas nem isso fez com que houvesse maiores simpatias com o time americano. Não havia um sentimento antiestadunidense forte, embora este pudesse ser verificado em alguns segmentos da população do país.

Sinto certa culpa, ao lembrar esta paixão pelo futebol brasileiro. Nos dias de hoje o técnico da seleção, o ultrapassado Felipão, faz a convocação do time para a Copa das Confederações, cuja final será aqui, no Rio de Janeiro, onde moro. No Maracanã – se é que se pode chamar aquele negócio lá da dupla Eike/Cabral por este santo nome. Falei tantas vezes para os haitianos da emoção de ir ao Maraca. Falei tantas vezes da beleza da minha cidade querida e, no entanto, a pouco menos de um mês do começo da Copa das Confederações, não tenho o menor desejo em torcer pela seleção.

Não são as mazelas ou falcatruas que envolvem a realização da Copa do Mundo de 2014 que me fizeram desgostar da seleção. Esta foi apenas a cereja de um bolo. Não consigo mais sentir aquilo que senti em 1994, mesmo com aquele travo de coisa amarga que desce pela garganta. A vitória nos pênaltis foi meio anticlímax. Não poderia jamais sentir o que sentia em 1982, com o maior time que já vi jogar – não conto as seleções de 58 e 70, porque numa não era nascido e na outra, pequeno demais para acompanhar os jogos. Não é apenas o desagrado com uma entidade que vem prejudicando os clubes e tratando a camisa canarinho como um produto – a casa do Brasil é o estádio do Arsenal, em Londres. Desde 2002 é o local onde a seleção jogou mais vezes. Não, não é só isso. É tudo isso.

Talvez, meus amigos haitianos, quem sabe até 2014, consigam fazer despertar de novo o gosto pela nossa seleção. Não creio. Mas quem sabe o amor que eles tem pelo nosso futebol não ajude? Ou será que até eles se bandearam para o futebol jogado pela Espanha, pela Alemanha ou, no pior dos mundos, virado a casaca para a Argentina?

Tomara que não…