A coluna do advogado Gustavo Cardoso coloca em perspectiva o papel histórico de Nelson Mandela, falecido na semana passada aos 95 anos.

Mandela e suas Guerras

Nelson Mandela agonizou na doença por um longo tempo antes de falecer. Enquanto isso, sua família se debatia numa desagradável guerra interna por sua herança, seu legado simbólico e até pelo local onde o patriarca seria sepultado. O mundo se horrorizou com o espetáculo. Todos lamentavam  que seus parentes estivessem pensando mais em vantagens pessoais que em honrá-lo.

Bastou que Madiba enfim partisse, e que os obituários saíssem das gavetas para os jornais, para que a disputa tomasse proporção planetária, agora estendida às mesmas pessoas que antes recriminavam a família, ou seja, todos nós. Instaurou-se uma batalha de versões, biografias e ideologias, na qual cada grupo alega ser mais afim às ideias de Mandela, ou melhor, que Mandela era mais afim às ideias do grupo.

O Líder do PT na Câmara, José Guimarães, declarou que “foi a partir do governo do Presidente Lula que o Brasil começou a reatar suas relações culturais, comerciais e econômicas com a África do Sul. Nelson Mandela tinha pelo Lula, como o Lula tinha por ele, uma relação de absoluta confiança e afinidade política e ideológica.” A imprensa de oposição preferiu lembrar que Mandela convidou Fernando Henrique Cardoso para integrar o grupo The Elders, que reúne políticos aposentados do mundo inteiro em defesa de causas humanitárias.

Dilma Rousseff foi uma das Chefes de Estado escolhidas para discursar no funeral, e levou consigo todos os ex-presidentes brasileiros vivos. Um jornal elogiou a iniciativa nestes termos: “Enquanto PSDB e PT se digladiam continuamente para conquistar ou manter-se no poder, seus líderes se unem nas homenagens a Mandela. É uma demonstração de que existem pontos de convergência na política.” O jornal se engana. Governo e oposição não convergem na política, mas na disposição de tirar uma casquinha com a morte do líder sul-africano.

Houve quem proclamasse que Mandela foi um “guerreiro da paz”. Já o presidente de Cuba, Raúl Castro, discursou no funeral e disse que Mandela foi o “símbolo supremo da luta revolucionária”. Em outro discurso, o presidente Barack Obama, dos EUA, aproveitou a oportunidade para cutucar Estados rivais: “Há muitos líderes que se apegam à solidariedade da luta de Madiba pela liberdade, mas não toleram a dissidência dentro de seu próprio povo”.

Também há, por certo, extremistas que se recusam a reverenciá-lo, lembrando sua orientação política e rotulando-o de “socialista”, “comunista” e “terrorista”. Sempre houve estas pessoas, a diferença é que no passado elas eram maioria. E boa parte dos que “mudaram de lado” de umas décadas para cá não se convenceu de que antes estavam errados; só perceberam que não ficava bem continuar-se colocando contra um líder que se tornou tão popular.

Nada disso deveria espantar. Mandela inspira admiração porque tinha virtudes superiores à da grande maioria dos homens. Nós não somos como Mandela, mas como os que, sofregamente, tentam capitalizar sua imagem. Ao nos perguntarmos, então, quem foi Nelson Mandela, devemos estar atentos à seguinte questão – quando interpretamos suas ideias e suas ações, será que estamos tentando transformá-lo em nós mesmos?

Como quer que se pretenda definir Mandela, é certo que ele não foi um “pacifista”, no sentido de que a paz não era seu objetivo político final. Este foi o resgate da dignidade do seu povo, com a instituição de uma sociedade igualitária. Como quase todo mundo, ele aspirava por paz após atingir seu objetivo, mas nunca esteve disposto a abrir mão dele pela “paz”. Mandela não se tornou um ícone porque pregasse a não-violência, mas porque sua luta, muitas vezes violenta, era justa.

Há quem diga que Mandela saiu da prisão amadurecido, tendo renunciado ao “terrorismo” para buscar uma solução pacífica para o conflito racial em seu país. É falso. Em 1985, quando já estava na prisão há mais de vinte anos, foi-lhe oferecida a liberdade em troca de assinar um documento renegando as ações violentas. Mandela recusou. Foi libertado incondicionalmente em 1990, e prontamente declarou: “Os fatores que nos levaram à luta armada ainda estão presentes. Não temos opção a não ser continuar. Esperamos que em breve seja criado um clima propício a um acordo negociado, de modo que a resistência armada se torne desnecessária.”

Nelson Mandela, como todo mundo, foi um homem de seu tempo, e os desafios políticos que se colocavam a um líder africano em meados do século XX eram o colonialismo europeu e seus efeitos, entre eles o apartheid na África do Sul. Foi um conciliador, mas tinha lado: sabia quem estava do seu lado e quem não estava. Prestou homenagem no túmulo do Aiatolá Khomeini, fez sua primeira visita de Estado à Cuba de Fidel Castro, e disse que “aqueles que se sentem irritados com nossa relação com Muamar Gadaffi podem pular na piscina”.

Goste-se ou não dessas pessoas e de seus regimes, foram elas, além da União Soviética e do Movimento Não Alinhado, que deram apoio político, econômico e militar à luta do CNA, enquanto Ronald Reagan e Margaret Thatcher tratavam a resistência como terrorista e defendiam o regime racista, que integrava o que os EUA chamavam de “mundo livre”. Mandela só saiu da lista de terroristas da Secretaria de Estado americana em 2008, aos noventa anos. Até então, ele e os demais líderes do CNA só podiam entrar nos EUA com autorização especial do Secretário.

A África do Sul era um Estado não só segregacionista, mas expansionista, que invadiu e ocupou Namíbia e Angola. Cuba enviou tropas para combater os sul-africanos, enquanto Israel negociou para passar à África do Sul o segredo da bomba atômica, o que felizmente não se consumou. Para além da ortodoxia marxista, o comunismo foi uma ideologia que exerceu poderosa atração sobre os movimentos de libertação nacional no terceiro mundo. Foi principalmente por isso que o partido comunista sul-africano se tornou um braço do CNA.

Aqueles que criticam as afiliações de Mandela esquecem que o “Ocidente” nem sempre foi simpático à luta dos negros na RSA. Foi no terceiro mundo, antes de Bono nascer, que se iniciou a pressão por boicotes ao regime do apartheid. Colonialismo e imperialismo são temas incômodos e fora de moda, mas não é possível ignorá-los se se deseja entender Mandela, suas estratégias e alianças. O contexto em que ele lutou foi, por desagradável que seja lembrar, o do conflito norte-sul.